O neo-liberalismo é a ideia de que o mercado capitalista governado pelo lucro deve tomar conta de todas as esferas de atuação humana do mundo: da comunicação, da saúde, dos relacionamentos amorosos, dos transportes, da educação, da geração de energia, da segurança e até da guerra. E assim o capital segue se expandindo livremente do átomo ao espaço sideral com aquela fúria cega que lhe é particular.
Vejam como o neo-liberalismo tem afetado profundamente os conflitos armados no mundo.
Tanto Estados Unidos como Rússia (que poderíamos chamar de países que estão na ponta de lança do assunto) têm usado e abusado de forças mercenárias em seus combates. Não são mercenários contratados para serem incorporados ao exército regular. São corporações, empresas que contratam, treinam, armam, transportam e comandam mercenários mediante contratos. É como um par de espelhos fantasmagóricos: com os Estados Unidos a Blackwater fez e desfez, por exemplo, na Somália, no Iraque e no Afeganistão; e agora com a Rússia o Grupo Wagner faz e desfaz na República Central Africana, na Síria e na Ucrânia.
Do ponto de vista do estado, a ideia é poder ter "uma estrutura" que opere em lugares e situações em que uma participação oficial seja "inconveniente" por razões políticas. Mas não é só a questão de onde e quando; trata-se também de COMO conduzir um combate. Os exércitos modernos estão sujeitos a procedimentos e códigos de conduta aos quais essas corporações mercenárias não estão. Elas operam com a mesma opacidade dos logaritmos das grandes corporações que dominam o mundo das redes sociais.
Um só exemplo basta. Estou usando informações daqui.
As tropas do Grupo Wagner que combatem na Ucrânia estão compostas de ex-militares russos (que usam um distintivo com a letra A, de classe A) e uma multidão de soldados recrutados diretamente nas prisões (que usam um distintivo com a letra K, de Kafka). Essa é uma multidão de semi-ex-presidiários: a comutação da pena depende do serviço satisfatório e da sobrevivência no campo de batalha. Eles operam sob um regime de terror: quem tentar desertar ou mesmo recuar no campo de batalha é imediatamente executado. Os recrutados nos presídios são mandados para o fogo em ondas sucessivas (e incessantes) de dez em dez soldados que vão morrendo e assim identificam os pontos da artilharia inimiga e vão cansando os ucranianos. Os oficiais do Wagner chamam essa estratégia de "chuva de carne".
Uma pesquisa em junho desse ano indicou que o grupo Wagner tinha naquela altura 60% de aprovação entre os russos - imagino que presidiários tenham na Rússia a mesma popularidade que eles têm no Brasil, onde não é difícil imaginar a aprovação popular para uma "chuva de carne". O lema do grupo Wagner é "Sangue, Honra, Pátria, Coragem", impossível não achar paralelos estilísticos com o "Por Deus, pela raça e pela nação" da KKK ou "Um povo, Um Reich, Um Fuhrer" do partido nazista ou "America First" dos fascistas americanos nos anos 40 ou "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos" do bolsonarismo.
As relações entre as forças armadas e essas corporações são ambíguas: elas se complementam mas também operam num clima de intensa rivalidade. No dia 24 de junho, tropas do Grupo Wagner foram confrontar o exército russo em território russo em vista do que o comandante do grupo chamava de "falta de apoio".
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