Mesmo gostando também de música “velha”, continuo, ao contrário da maioria dos meus companheiros de geração, ouvindo música nova. Ainda mais porque hoje em dia a internet nos favorece acesso mais ou menos fácil a todo tipo de música. E esse espaço existe para eu compartilhar coisas que eu acho bacanas com o público que me visita aqui.
No último post do ano queria compartilhar um achado de 2023: a música de Adrianne Lenker e do Big Thief, quarteto do qual ela faz parte – já compartilhei aqui uma canção da banda, “Not”. Agora vou escrever mais especificamente sobre a música que Lenker fez durante a pandemia: dois álbuns inteiros sozinha no violão, um de canções e outro de instrumentais.
Ela passou boa parte daqueles tempos nebulosos em isolamento, no meio do mato, numa casinha de madeira nas montanhas Berkeshires, um lugar de onde só tenho memórias boas, região montanhosa no oeste de Massachussetts, onde a natureza revivida convive com as cicatrizes da primeiríssima era industrial, quando a energia produzida por quedas d’água era fundamental. Com a chegada de outras formas de energia, as fábricas se mudaram para locações mais convenientes e as Berkeshires viraram um canto de tranquilidade. É uma região linda, que nós visitamos várias vezes quando vivíamos em Connecticut, cheia de instituições de arte bacanas como o Museum of Cantemporary Art de Massachussetts, o Clark Museum e uma fazenda modelo dos Shakers.
Para introduzir esse trabalho de Lenker escolhi “Ingydar.” Eis o vídeo com a música e a letra:
INGYDARFragilely, gradually and surroundingThe horse lies naked in the shed.Evergreen anodyne decompounding,Flies draw sugar from his head.His eyes are blueberries, video screensMinneapolis schemes and the dried flowers from books half-read.The juice of dark cherries cover his chin,The dog walks in and the crow lies in his jaw like lead.Everything eats and is eaten, time is fed.Early еvening, the pink ring swallowsThe sphеrical marigold terrain.Sleepily, Venus sinks and hollowsThe stationed headlight of a plane.You are as far from me as memoryWith fixtures fracture varyingly.The juice of dark cherries cover my skin.Six years in, no baby.Everything eats and is eaten.Ingydar bares a scar like a meteor,Crystalline amber guilds her cheek.Tambourine of the beech leaves lead herTo the raven playing hide and seek.Drying blueberries, figurines and the angel leans at the head of the bed.The juice of dark cherries cover my chin.The dog walks in and the crow lies in his smile like lead.Everything eats and is eaten, time is fed.Everything eats and is eaten.
O título da canção é o nome de um cavalo da avó de Lenker, animal que ela encontrou morto em decomposição quando era menina, um encontro que a impactou muito. Lenker compôs e gravou “Ingydar” quando recebeu a notícia do falecimento da avó, na época da pandemia. A primeira estrofe descreve com olhos de menina os detalhes mais marcantes da cena, encerrando com a participação de cão e corvo, animais que comem carniça com a naturalidade de animais. A segunda estrofe se refere obliquamente ao relacionamento que Lenker teve com o guitarrista do Big Thief, depois de mais uma descrição objetiva e original da cena primal ao contrário, o encontro com a estranha vida após a morte.
Frágil, gradual e envolvente
o cavalo jaz nu no galpão.
Perene inofensivo decompondo-se,
as moscas extraem açúcar da sua cabeça.
Em Enquanto agonizo (As I Lay Dying), Vardaman, o filho mais novo da defunta do título, também se encontra com um cavalo morto em decomposição:
“Era como se o escuro estivesse dissolvendo sua inteireza, separando-o num punhado de componentes separados espalhados – cheiros e impressões; aromas de carne se esfriando e cabelo amoníaco; a ilusão de um todo coordenado de couro malhado e ossos fortes na qual, desligado e secreto e reconhecível, um ser diferente do meu seu. Eu o vejo dissolver – pernas, um olho que rola, uma mancha apelativa parecendo uma chama fria – e flutuar no escuro numa solução desbotada; tudo um e ainda assim nenhum; tudo cada um e ainda assim nada.”
Addie Bundren na adaptação de As I Lay Dying por James Franco
A maioria da literatura e da música [principalmente música popular] funciona como um rearranjo de fragmentos de coisas que já foram feitas antes. Algumas dessas seleções agradam de cara multidões e depois se apagam com o tempo. Faulkner escreve e Lenker compõe como se não houvesse nada para copiar antes ou depois, como se eles tivessem que inventar tudo a partir de um mundo mais descomposto, desarticulado, sem pistas e sem amarras. O resultado é uma literatura e uma música “estranhas,” artefatos que flertam o tempo todo com o desastre e o fracasso e que atraem rejeição e desprezo de muita gente.
Coisa de gente muito corajosa? Não sei dizer. Acho que é mais uma questão de temperamento artístico do que qualquer outra coisa.
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