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Sessenta anos: Martin Luther King Jr., gênio da retórica na sua cultura

1. Concordo com Benedict Anderson em ver na imaginação a cola que mantém uma nação minimamente coesa.

2. Somos um animal coletivo narcisista e por isso imaginamos comunidades nacionais criando mitos fundamentalmente positivos.

3. Falo dessa imaginação mítica [ainda com a mesma sanha sintética] em dois lugares que conheço intimamente: Nos Estados Unidos, o mito de ser um ícone luminoso da liberdade produtiva; no Brasil, o mito de ser um ícone luminoso da afetividade prazeirosa.

4. Nenhum mito é simplesmente uma mentira. Os mitos, como os estereótipos, têm poder porque vão buscar em alguma realidade a medula da sua construção fundamentalmente fantasiosa.

5. Entendi mais firmemente o gênio retórico de MLK, lendo a fantástica carta aberta que ele escreveu em abril de 1963 (há 60 anos) no xilindró em Birmingham, Alabama. A carta se dirige ostensivamente a outra carta aberta, publicada no jornal local por líderes religiosos, condenando as manifestações que lançaram o "Projeto C" ("c" aqui significava "confronto") em Birmingham.




6. Esboçada nas próprias margens do jornal e em pedaços de papel (até que MLK arrumasse um bloco de papel contrabandeado), "A carta da prisão em Birmingham" pega o mito americano e o transforma em arma poderosa de mobilização de apoio a protestos e mudanças que mexiam com um alicerce profundo da identidade estadounidense - a segregação racial.

7. Os detalhes fogem ao propósito desse canto quase abandonado da internet. Uma palhinha apenas: num mesmo parágrafo, Jesus, São Paulo, Lutero e Paul Bunyan (ícones do cristianismo na sua feição protestante) se juntam aos profetas americanos da liberdade: Jefferson (o democrata sulista autor da declaração de independência) e Lincoln (o republicano nortista autor da abolição da escravidão na porrada).

8. Aquele 1963 tinha começado com o novo governador do Alabama declarando em seu discurso de posse: "Segregação hoje! Segregação amanhã! Segregação sempre!" Em maio o STF dos Estados Unidos declara as leis de segregação no Alabama como institucionais e em junho Kennedy passa a Lei dos Direitos Civis no congresso citando os eventos em Birmingham. Em 1964 MLK vai a Oslo receber o Nobel da Paz.

9. Sim, em 1968 MLK seria assasinado covardemente em Memphis. Mas isso só selaria o mito que se constrói em torno dele mesmo, hoje nome de feriado nacional.

10. Quem teria a combinação equilibrada de gênio e coragem para fazer o mesmo com os mitos nacionais brasileiros?


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