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O que é isso, Companheiro? (1996) e Batismo de Sangue (2007)






















Eu acho que é um equívoco terrível pensar que “considerar os dois lados” ao contar a história de um dado conflito é o suficiente para alcançar uma posição de neutralidade que equivale à fazer justiça. Essa equívoco parte do pressuposto algo ingênuo de que no fundo somos todos seres humanos e portanto merecemos todos, sem exceção, um olhar de compaixão. Imagina-se que transformando um nazista de vilão absoluto em homem trágico é o suficiente para ser mais profundo e humano na representação do nazismo.
Um exemplo desse equívoco foi o filme O que é isso, companheiro? adaptado livremente do livro do sobrevivente da guerra suja brasileira Fernando Gabeira, centrando atenção em um episódio da história brasileira que não ocupa o centro do livro, o seqüestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick. O filme de Bruno Barreto decidiu dar dores de consciência e justificações patrióticas a um torturador do aparato repressivo da ditadura militar e transformar um dos seqüestradores em um assassino frio e sanguinário. Seria produto de preguiça mental imaginar que Bruno Barreto equivocou-se por ser um simpatizante da ditadura militar ou uma pessoa com problemas cognitivos. Acho que o roteirista do filme errou feio na construção da história do filme mas também acho que esse erro só pode ser visto hoje com tal clareza por termos um distanciamento de doze anos e ver o resultado do filme em retrospecto. Suponho até que os problemas de O que é isso companheiro? acabaram servindo de lição para vários cineastas brasileiros que abordaram a ditadura militar depois dele.
Quero esclarecer que esse equívoco particular no roteiro do filme não deriva do problema de Bruno Barreto tratar de fatos históricos e das pessoas ali retratadas sentirem-se aviltadas pelo filme – outra questão interessante para discutir, principalmente em vista da visão algo ingênua de que, já que história e ficção têm fronteiras tênues, elas são a mesma coisa. O problema aqui é outro e é preciso dizer algo óbvio: nem tudo é relativo e nem sempre compreender os dois lados garante a uma narrativa histórica profundidade e justiça.
Por isso é que eu acho que um outro filme baseado em um livro de um sobrevivente da ditadura, no caso Batismo de Sangue de Frei Betto sobre o mesmo período lançado em 2007 e que vai em outro sentido, Batismo de Sangue de Helvécio Ratton, é, apesar da relativamente pouca repercussão, um filme excepcional: denso, humano, sincero e justo tanto com as vítimas como com os algozes. Justo, sim, porque tentam hoje cada vez com maior freqüência simplesmente igualar os dois lados que lutavam a guerra suja no Brasil nos anos sessenta e setenta e isso é um equívoco terrível. A mensagem que essas pessoas acabam passando da história do período é mais ou menos a seguinte: “Fleury e Marighella mais ou menos são iguais, os dois lados usavam de violência, tratava-se de uma guerra e não devemos julgar nenhum dos dois ou então condenar os dois nos mesmos termos.” Isso não é compreender em profundidade o que aconteceu na época (muito pelo contrário, é substituir a reflexão necessária sobre o período pela repetição de chavões de livros de auto-ajuda) e isso não é fazer justiça a pessoas que levantaram armas contra uma ditadura violenta e intolerante e foram caçadas por pessoas que foram capazes de gestos abomináveis porque buscavam usufruir das benesses dessa mesma ditadura.

Comments

Anonymous said…
Paulo, excelente post. Estou próximo a você no tocante à chamada "humanização" do conflito - o que acaba desvirtuando a percepção do próprio conflito. Tenho um texto a respeito, este seu post me instigou a bolar uma versão para o meu blog. Valeu pela indicação do Batismo de Sangue, conheço o livro e tinha ouvido falar do filme, agora tenho mais um motivo para ver. Abraço,

Alexandre
Valeu pelo comentário, Alexandre!

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