Ninguém nega que exista circulação de informação e cultura em escala global, mas poucas pessoas parecem conscientes que essa circulação obedece a regras rígidas que estabelecem rotas fixas de caráter claramente colonial e/ou imperialista. Assim só conhecemos no Brasil músicos, diretores, atores, escritores, etc de um outro país periférico no sistema quando esse indivíduo é "eleito" nos centros culturais globais, recebendo a chancela de "aceite". E vice-versa, mesmo em países próximos como Brasil e Argentina. Eles ficam com Cidade de Deus, mas sem Lavoura Arcaica, nós ficamos com O Filho da Noiva, mas sem Mundo Grúa. Poderíamos chamar esse conjunto de regras de mercado aplicada à cultura tanto quanto aos bens de consumo de um sistema internacional de aduana cultural. Se você atua de alguma maneira como agente cultural [penso aqui que agentes culturais vão desde de um produtor profissionalizado a um simples dono de blogue caseiro] e não trata de novelas de TV, Ivetes Sangalos, filmes da Xuxa ou livros do Paulo Coelho, então, meu caro leitor, você exerce essa função vital para a cultura contemporânea: você é um contrabandista cultural, um peixinho miúdo do tipo sacoleiro vindo do Paraguai, e deveria estar plenamente consciente disso para exercer com máxima eficiência a sua função. Quando falo com brasileiros de Mundo Grúa, de Adrián Caetano, de Garage Olimpo [um filmaço sobre a repressão Argentina], de Carlos Pellicer, de Rosario Castellanos, de Juan Rulfo, etc, faço o mesmo papel de quando falo com estrangeiros de Edifício Master, de João Moreira Salles, de Cabra-Cega, de Drummond, de Cecília Meirelles, de Guimarães Rosa. Sei que a maioria franze a testa e pensa: "de onde é que esse cara tira essas coisas?" Graças ao mundo globalizado "essas coisas" estão cada vez mais logo aí ao seu alcance. Pelo menos potencialmente falando. Graças ao sistema de alfândega cultural que aceitamos passivamente esse potencial magnífico não se concretiza. Como eu já disse, sou um sacoleiro: meu ofício é no "café pequeno", no varejo miúdo. E daí? Quem quiser abrir os olhos vai perceber que grandes coisas, coisas muito importantes, estão sendo feitas por aí a torto e a direito. Mas é preciso querer abrir os olhos para o que se passa além dos entrepostos oficiais da aduana cultural: os jornalões, a TV comercial, os "grandes meios".
Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...
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