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Obituário: Belchior

O cearense Belchior já tinha 29 anos quando finalmente estourou com o álbum Alucinação em 1976. No começo daquele ano a consagradíssima Elis Regina já tinha dado um certo impulso ao compositor gravando duas versões fantásticas para músicas dele ["Como nossos pais" e "Velha Roupa Colorida"] no disco Falso Brilhante. O Brasil atual produz cantores genéticos a granel e o contraste não podia ser mais forte, pois Belchior não podia ser confundido com ninguém: A voz anasalada inconfundível e um maneira de encaixar letra na música que deve um bocado a Bob Dylan, particularmente a aquele Dylan mesmo daquela época dos anos 70, que flertava com a música Country daquela época bem à sua maneira, o faziam único. Não se trata, como às vezes se diz por aí, de versos que não rimam, mas de versos que, rimando, esticam ou encolhem a métrica o tempo todo - na base de "o verso só acaba quando eu rimar". Alucinação era um disco de canções com longas letras escritas na primeira pessoa, com uma mistura curiosa de sofisticação numa metralhadora de citações a fontes diversas e um bom humor bastante escrachado com aqueles momentos de dilaceração típicos da música brasileira naquela época, reflexo quem sabe da tristeza que era aquele momento no Brasil. Como muitas coisas gravadas no Brasil naquela época, as influências [estrangeiras ou domésticas] são bem digeridas, processadas muito além de uma simples cópia ou de uma colagem de pastiches. Belchior não tocava então música propriamente nordestina [baião, xote, xaxado, etc] nem oferecia qualquer tipo de mistura tropicalista à moda de tantos outros, mas colava a influência de Dylan e dos Beatles, tão fortes no Clube da Esquina também, com a mesma capacidade de fazer uma coisa muito sua, que respondia muito à experiência de muita gente naquela época e talvez até hoje no Brasil.

Vou destacar aqui uma das maravilhas daquele disco, "Retrato 3x4":

Retraro 3x4
Belchior

Eu me lembro muito bem do dia que eu cheguei.
Jovem que desce do norte pra cidade grande,
os pés cansados e feridos de andar légua tirana
de lágrimas nos olhos de ler o Pessoa
e de ver o verde da cana.

Em cada esquina que eu passava um guarda me parava,
pedia os meus documentos e depois sorria
examinando o 3x4 da fotografia
e estranhando o nome do lugar de onde eu vinha.

Pois o que pesa no norte pela lei da gravidade -
disso Newton já sabia - cai no sul, grande cidade,
São Paulo violento, corre o Rio que me engana,
Copacabana, zona norte e os cabarés da Lapa onde eu morei.

Mesmo vivendo assim, não me esqueci de amar,
que o homem é pra mulher e o coração pra gente dar.
Mas a mulher, a mulher que eu amei não pode me seguir, não.
Esses casos de família e de dinheiro eu nunca entendi bem.
Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua.
A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia
e pela dor eu descobri o poder da alegria
e a certeza de que tenho coisas novas, coisas novas pra dizer.

A minha história é talvez, é talvez igual a tua:
jovem que desceu do norte
e que no sul viveu na rua
e que ficou desnorteado, como é comum no seu tempo
e que ficou desapontado, como é comum no seu tempo
e que ficou apaixonado e violento como você.
[repete]

Eu sou como você
Eu sou como você
Eu sou como você que me ouve agora
Eu sou como você
Eu sou como você
Eu sou como você
Eu sou como você
Eu sou como você
Eu sou como você

Deixar a terra natal é tema dominante de música nordestina desde Luiz Gonzaga e "Retrato 3x4" se encaixa perfeitamente nessa tradição, nem tanto por demonstrações de saudades mas pelo par hostil: o Rio de Janeiro enganoso e São Paulo violento. Só que esse "retirante" inventado por Belchior não é um camponês iletrado como aquele inventado pelo letradíssimo Humberto Teixeira. Esse jovem nordestino tem uma rede de conhecimentos sofisticados e cita Fernando Pessoa [como memória do Norte], Isaac Newton [em chave sarcástica para explicar o êxodo de nordestinos como frutas maduras que então "caem" no Sul Maravilha] e Caetano Veloso [chamado pelo sobrenome propositalmente na contra-mão da vontade de exibir proximidade que é tão típica da nossa cultura].

O curioso é que se a gente para para pensar Belchior não fez muito depois de Alucinação. Se gravou nas quatro décadas que separam aquele segundo disco da sua morte agora, foi regravando muitas coisas dessa época. Mas só Anunciação [e não dá para reduzir tudo aí nesse disco] basta. O próprio Belchior tem um depoimento que eu acho fantástico:

"Num momento da vida, você tem que afirmar sua própria vontade e seu próprio modo de existência. Só existe liberdade onde você pode dizer não. Então, eu sempre disse o não que era necessário”. [Achei esse depoimento nesse caderno especial sobre Belchior no jornal O Povo.

Aqui o disco inteiro:

Comments

Renata Lins said…
Nem ele, nem Ednardo... né? Pessoal do Ceará marcou época com um trabalho breve e intenso.
Eu fui levado a pensar nessa questão por causa do escritor Juan Rulfo. Ele publicou dois livros nos anos 50 e modificou alguma coisa ou outra nos dois livros mas não publicou mais nada da mesma proporção até o fim da vida nos anos 80. E a questão é: precisa fazer mais coisas inéditas? É preciso ter 200 discos, 300 livros, 900 quadros? Suponho que algumas pessoas precisam disso e outras não. Mas o mercado quer sempre novidade...
No meio dessa imensa padronização que a gente chama de "controle de qualidade" é sempre interessante dar uma observada mais próxima nas pessoas que "somem", que "param", que "erram".
Selma said…
E nessa linha tem o Raduan Nassar na literatura também, não é?
Paulo said…
This comment has been removed by the author.
Sem dúvida, Selma. Achei muito interessante que na longa sequência de reportagens, artigos e entrevistas que um jornal do Ceará fez sobre Belchior, nenhum conhecido ou familiar tenha atribuído o "exílio", "afastamento" ou sei lá o que a um problema mental ou com drogas, mas sim a uma escolha dele, Belchior, de se afastar de tudo. Parece que, desde menino, Belchior fugia de casa, sumia uns tempos e o próprio disse numa entrevista que "Num momento da vida, você tem que afirmar sua própria vontade e seu próprio modo de existência. Só existe liberdade onde você pode dizer não. Então, eu sempre disse o não que era necessário”.

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