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Os godos e o engodo racial em Machado de Assis e Lima Barreto

Muita gente acha que questões raciais estão ausentes da literatura brasileira mais antiga porque não sabe ver. Trago aqui dois exemplos clássicos, de mais de cem anos, de discussão certeira sobre as falácias do embranquecimento e da valorização da cor branca no Brasil. Os dois exemplos se apoiam num mesmo termo racial, usado de modo sarcástico, em Machado de Assis e em Lima Barreto: "godo", que se refere às tribos bárbaras [ostrogodos e visigodos] que invadiram e tomado entre partes do império romano como a península ibérica e a Itália, vira um sinônimo irônico para branco nos dois textos.

Machado de Assis com a ironia fina peculiar lista entre as "moléstias mentais" diagnosticadas por Simão Bacamarte em "O alienista"não apenas a mania do embranquecimento, mas também a hipócrita cegueira a respeito dessa mania:

"Alguns cronistas crêem que Simão Bacamarte nem sempre procedia com lisura, e citam em abono da afirmação (que não sei se pode ser aceita) o fato de ter alcançado da Câmara uma postura autorizando o uso de um anel de prata no dedo polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de sangue godo. Dizem esses cronistas que o fim secreto da insinuação à Câmara foi enriquecer um ourives, amigo e compadre dele; mas, conquanto seja certo que o ourives viu prosperar o negócio depois da nova ordenação municipal, não o é menos que essa postura deu à Casa Verde uma multidão de inquilinos; pelo que, não se pode definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do ilustre médico. Quanto à razão determinativa da captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram do anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí; a opinião mais verossímil é que eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à toa, nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo caso, é uma simples conjetura; de positivo, nada há." 

Lima Barreto retoma o termo quando Castelo, protagonista de "O homem que sabia javanês", caracteriza-se racialmente e brinca com a diversidade racial brasileira [diversidade imaginária tanto quanto diversidade concreta] dizendo que nosso país tem de tudo, "até godos":

"Estes meu cabelos corridos, duros e grossos e a minha pele basané podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço malaio... Tu sabes bem que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches, guanches, até godos. É uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro."
Só no Brasil o menino prodígio Neymar e o gorducho fenômeno Ronaldo formariam uma dupla de neo-godos.

Comments

tarso said…
Boa noite, você teria indicações de leituras sobre a questão racial na obra de Machado? Um abraço.

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