Neste mês de junho o blogue do crítico decinema do Estadão Luiz Carlos Merten
traz uma série de comentários sobre o livro L’Art d’Aimer,
coletâneas com textos diversos do crítico francês Jean Douchet, incuindo
entrevistas com o próprio.
Especificamente no dia 11 de junho de 2017
Merten comenta as resenhas feitas por Douchet para o Cahiers du Cinema em várias edições do Festival de Cannes. e destaca um comentário pelo crítico francês sobre Buñuel, que
apresentou Viridiana à Palma de Ouro
em 1961. Traduzido para o português por Merten, ficamos nos seguintes termos: “Buñuel é um autor,
mas não um metteur-en-scène, exceto
por momentos. Fica sempre preso ao símbolo, incapaz de se apagar diante das
coisas”.
Cena de Viridiana de Buñuel |
Quero me ater aqui à segunda frase desse curto
comentário, que me impressiona pela concisão e pela riqueza. Seríamos capazes
de classificar os artistas em geral [vou além da proposição de Douchet, que se
atém a diretores de cinema] pela sua capacidade de se apagar diante das coisas?
Por um lado, penso na natureza desse auto apagamento e vejo nele um artifício
eminentemente retórico. Seria mais pertinente, portanto, falar de uma
disposição para o auto apagamento mais do que para uma capacidade de fazê-lo.
Poderíamos, por outro lado, argumentar que o relativo apagamento do artista
diante das coisas é o centro da questão, já que pragmaticamente pouco importa se
esse apagamento é fruto da capacidade ou da disposição daquele que se apaga nas
coisas. Fica a minha vontade de deslocar um pouco o comentário e transformar o
termo capacidade num binômio capacidade/disposição, ainda que seja para afirmar
que a atitude de Buñuel não uma incapacidade, mas sim uma disponibilidade para
uma linguagem abertamente simbólica.
O que nos leva à outra parte da proposição
de Douchet, que é para mim ainda mais intrigante. Esse relativo apagamento implicaria
na libertação do artista em relação ao símbolo – símbolo que, para Douchet, é
indiscutivelmente uma prisão, pelo menos no caso de Buñuel de Viridiana.
Apagar-se diante das coisas seria não fazer das coisas veículo para a expressão
retórica do cineasta. Suponho aqui que Douchet imaginasse que o filme ideal nos
apresentaria essas tais coisas do mundo [coisas que o diretor mete em cena] e que o
simbolismo [talvez até a vontade de simbolismo] faz dessas coisas veículo para si mesmo e acaba aprisionando o
diretor de cinema no papel de Autor - meio como o tradutor aparecido que insiste em chamar a atenção para si e para o seu trabalho ao invés de exercer seu ofício em silêncio estilístico. A expressão do diretor que não se apaga diante
das coisas está contido numa forma de prisão –
vejam que blasfêmia ouvir isso hoje, quando parece que todo mundo na face da
terra precisa se expressar, se colocar, se definir, se explicar no palanque público
das redes sociais.
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Acho interessante a proposição de Douchet. Mas não tenho essa preferência dele pelos diretores que são mais metteurs-en-scène, em detrimento daqueles que, como Buñuel, se
comunicam simbolicamente como autores. E antes de dizer isso, devia explicar que suspeito que todo artista exerça ambos
papéis ainda que em proporções diferentes, tendendo a deixar prevalecer uma ou outra
faceta, não apenas como fruto da sua capacidade/disposição mas também do tipo
de arte que tenta fazer. Isso é assunto para um outro dia, mas o cinema é uma arte
coletiva tão complexa que é comum a gente ver um abismo entre o desejo do
realizador e a realidade do filme, uma rodovia de doze pistas toda pavimentada
de boas e más intenções, rumo ao inferno - e confesso que esse caráter mambembe do cinema, mas me atrai que irrita.
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