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Entre o 1984 de Orwell e o nosso 2017

Estamos lendo em voz alta em conjunto e ao ritmo de um capítulo por dia o livro 1984 de George Orwell. Estamos ainda no capítulo 5 e, se algumas passagens me impressionam, não é pelo que o livro teria, supostamente, de profecia sobre o futuro. Acho que Orwell foi esperto o suficiente ao não tentar adivinhar como seria a vida de fato em 1984, mas em concentrar-se numa espécie de caricatura grotesca para coisas grotescas que já aconteciam na época mesma em que o livro foi escrito.  

Nem por isso deixei de sentir um arrepio, por exemplo, lendo em voz alta para o meu filho, que nasceu nos Estados Unidos menos de três meses antes do ataque de 11 de setembro e que, portanto, vive num país em guerra desde sempre, a seguinte passagem: 

"Winston could not definitely remember 
a time when his country had not been at war..."
"Winston não podia se lembrar com exatidão sobre um tempo 
em que seu país não estivesse em guerra..."

O curioso é que o estado de guerra permanente em que os Estados Unidos vivem desde então foi normatizado a tal ponto que todas as muitas mudanças introduzidas na cultura e na vida diária foram completamente normatizadas e por isso passam desapercebidas. A exceção é claro são aqueles que, em troca de algum sonho de ascenção numa sociedade estratificada e engessada há muito tempo, estão no campo de batalha, e de suas famílias - muito se fala sobre eles, sempre com um pieguismo culpado de filme americano, mas no fim das contas o fim do alistamento universal depois do Vietnã permitiu que a guerra seja invisível para muita gente. 

Senti outro arrepio, de outra natureza, quando li essa outra passagem que apresenta com precisão acidental um certo estado de espírito dos dias de hoje:

"The enemy of the moment always represented absolute evil, and it followed that any past or future agreement with him was impossible." [43]
"O inimigo do memento sempre representava o mal absoluto, e daí concluía-se que qualquer acordo, passado ou futuro, com ele era impossível.  

Um mundo como o nosso, aparentemente governado por conflitos sempre dispostos de forma tão absoluta e irreconciliável, rapidamente caminha para um mundo totalitário, onde o único destino aceitável para os nossos inimigos políticos [e outros inimigos também] é a cadeia. Ou pior: a morte.  

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