Os computadores e a internet alteraram radicalmente a nossa noção de espaço, principalmente a partir dos telefones conectados às redes sociais. Sinto que sei disso melhor que pessoas mais jovens do que eu, pessoas que já nasceram dentro deste mundo. Meu quarto de dormir, provavelmente o que havia de mais íntimo na minha vida privada, tornou-se de repente ponto de contato com um público imenso. São amigos, simples conhecidos, parentes, algumas figuras de um passado distante, colegas de trabalho e de profissão e mesmo alguns completos desconhecidos que formam esse público que, de repente, tem acesso a esse meu espaço mais íntimo. E eu tenho acesso à intimidade deles - uma certa versão maquiada dessa intimidade, é claro. Cada um usa os filtros que lhe convém - alguns se desnudam ao ponto do embaraço, outros se mantém rígidos atrás de fotos hiper-coloridas de pratos de comida e bouquets de flores e sorrisos resplandecentes.
Esse curto circuito entre as distâncias que se desmancham e as intimidades que se revelam é principalmente muito violento. Não apenas porque a falta de cuidado com as distâncias descamba facilmente para a intromissão e a invasão. Sinto que a vida articulada pelas redes sociais, a vida vivida dentro delas, é um vida de apelos violentos aos nossos afetos. Somos instados agressivamente a amar e a odiar as coisas, os eventos e as pessoas. São violências ao mesmo tempo íntimas e públicas. Não é bom aparecer para tanta gente assim dessa maneira: vistos de perto demais, de uma forma que revela ao mundo nossos defeitos com uma intensidade insuportável. É como a pele de um ser humano comum vista com uma potente lente de aumento, que se transforma numa superfície monstruosa.
Não é bom se sujeitar a assistir assim de tão perto a intimidade dos outros também de qualquer maneira. Mas o que acontece quando a intimidade se mistura com a política, com as últimas notícias e com o mundo das colunas sociais? Tudo revelado de perto, em detalhes. Eu acho que devo saber que os mais vulneráveis sofrem e quero ser capaz de fazer alguma coisa para ajudar, mas sinto que ser exposto a vídeo de decapitações e linchamentos e violações é sofrer futilmente com essa violência toda. Isso não é solidariedade, é masoquismo.
Retirar-se é estratégia de sobrevivência. Preservar-se para continuar vivo. Não sei em quê o mundo se beneficiaria com a implosão da minha saúde psíquica. Preciso de energia vital para viver plenamente o que eu acredito ser a única vida que possuo. Para isso sinto que é fundamental me resguardar. Digo isso sabendo que isso não deve ter nada a ver com algum álibi para alienar-se do mundo. Quero saber o mais que posso sobre quem sou e que tempo e espaço são esses nos quais me calhou viver minha vida. Mas em nome da sanidade, sei que preciso me poupar.
Escrevi o texto acima antes do resultado eleitoral. Agora seremos governados por um homem que combina temperamento explosivo e intolerante com pouquíssima capacidade de compreensão da realidade. Só me resta crer que essas limitações impedirão esse sujeito de grandes feitos. Porque o que ele gostaria de fazer seria devastador para o Brasil e para os brasileiros: rios de sangue "na ponta da praia". Mais de 50% dos votos válidos não concordam com essa visão das coisas, isso é um fato duro, mas incontestável. Não sei quando voltaremos a poder votar - se dependesse do nosso presidente, nunca mais. Melhor encarar a verdade de frente: o Brasil é um país que adora soluções mágicas e periodicamente febril e 2018 vai se juntar a outros vários anos [os mais recentes deles 1960 e 1989] em que o país tem o ímpeto febril de eleger [ou enfiar no poder] um "maluco" para dar um jeito em "tudo isso o que está aí". Mantenho o "maluco" sempre entre aspas, pois já dizia minha avó que maluco é quem rasga dinheiro e os nossos palhaços de vassoura em punho nunca rasgaram dinheiro que não fosse dos outros. O "maluco" da vez não é um civil e nem sequer um militar adestrado em anos de hierarquia. Traz a tiracolo um Chicago Boy extremista completamente desprovido de experiência pública e dependemos agora completamente da força do compromisso entre os dois para saber a extensão da demolição. Sou capaz de apostar que ao primeiro sinal de colapso o Capitão desabraça o aprendiz de libertário com a mesmo facilidade com que ele abraçou o pentecostalismo. As máscaras caem e só fica a sede de poder absoluto e perpétuo para fazer correr os tais rios de sangue com os quais eu tenho certeza que ele sonha.
Continuo em favor do recolhimento, consciente de que minha opção é a escolha de alguém que mora muito longe do Brasil. Não sei sinceramente o que dizer a amigos e familiares que agora estão em perigo pelo que são e pelo que fazem na vida e tem que sair para a rua e ganhar a vida amanhã. Não sei sinceramente o que dizer aos colegas que vivem do ensino de literatura no país cavalgadura que agora se apresenta aos nossos olhos e vão, quase todos, ser administrados por uma gangue de energúmenos. Saídas coletivas, saídas individuais, não sei.
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Esse curto circuito entre as distâncias que se desmancham e as intimidades que se revelam é principalmente muito violento. Não apenas porque a falta de cuidado com as distâncias descamba facilmente para a intromissão e a invasão. Sinto que a vida articulada pelas redes sociais, a vida vivida dentro delas, é um vida de apelos violentos aos nossos afetos. Somos instados agressivamente a amar e a odiar as coisas, os eventos e as pessoas. São violências ao mesmo tempo íntimas e públicas. Não é bom aparecer para tanta gente assim dessa maneira: vistos de perto demais, de uma forma que revela ao mundo nossos defeitos com uma intensidade insuportável. É como a pele de um ser humano comum vista com uma potente lente de aumento, que se transforma numa superfície monstruosa.
Não é bom se sujeitar a assistir assim de tão perto a intimidade dos outros também de qualquer maneira. Mas o que acontece quando a intimidade se mistura com a política, com as últimas notícias e com o mundo das colunas sociais? Tudo revelado de perto, em detalhes. Eu acho que devo saber que os mais vulneráveis sofrem e quero ser capaz de fazer alguma coisa para ajudar, mas sinto que ser exposto a vídeo de decapitações e linchamentos e violações é sofrer futilmente com essa violência toda. Isso não é solidariedade, é masoquismo.
Retirar-se é estratégia de sobrevivência. Preservar-se para continuar vivo. Não sei em quê o mundo se beneficiaria com a implosão da minha saúde psíquica. Preciso de energia vital para viver plenamente o que eu acredito ser a única vida que possuo. Para isso sinto que é fundamental me resguardar. Digo isso sabendo que isso não deve ter nada a ver com algum álibi para alienar-se do mundo. Quero saber o mais que posso sobre quem sou e que tempo e espaço são esses nos quais me calhou viver minha vida. Mas em nome da sanidade, sei que preciso me poupar.
Escrevi o texto acima antes do resultado eleitoral. Agora seremos governados por um homem que combina temperamento explosivo e intolerante com pouquíssima capacidade de compreensão da realidade. Só me resta crer que essas limitações impedirão esse sujeito de grandes feitos. Porque o que ele gostaria de fazer seria devastador para o Brasil e para os brasileiros: rios de sangue "na ponta da praia". Mais de 50% dos votos válidos não concordam com essa visão das coisas, isso é um fato duro, mas incontestável. Não sei quando voltaremos a poder votar - se dependesse do nosso presidente, nunca mais. Melhor encarar a verdade de frente: o Brasil é um país que adora soluções mágicas e periodicamente febril e 2018 vai se juntar a outros vários anos [os mais recentes deles 1960 e 1989] em que o país tem o ímpeto febril de eleger [ou enfiar no poder] um "maluco" para dar um jeito em "tudo isso o que está aí". Mantenho o "maluco" sempre entre aspas, pois já dizia minha avó que maluco é quem rasga dinheiro e os nossos palhaços de vassoura em punho nunca rasgaram dinheiro que não fosse dos outros. O "maluco" da vez não é um civil e nem sequer um militar adestrado em anos de hierarquia. Traz a tiracolo um Chicago Boy extremista completamente desprovido de experiência pública e dependemos agora completamente da força do compromisso entre os dois para saber a extensão da demolição. Sou capaz de apostar que ao primeiro sinal de colapso o Capitão desabraça o aprendiz de libertário com a mesmo facilidade com que ele abraçou o pentecostalismo. As máscaras caem e só fica a sede de poder absoluto e perpétuo para fazer correr os tais rios de sangue com os quais eu tenho certeza que ele sonha.
Continuo em favor do recolhimento, consciente de que minha opção é a escolha de alguém que mora muito longe do Brasil. Não sei sinceramente o que dizer a amigos e familiares que agora estão em perigo pelo que são e pelo que fazem na vida e tem que sair para a rua e ganhar a vida amanhã. Não sei sinceramente o que dizer aos colegas que vivem do ensino de literatura no país cavalgadura que agora se apresenta aos nossos olhos e vão, quase todos, ser administrados por uma gangue de energúmenos. Saídas coletivas, saídas individuais, não sei.
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