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Quando a barra pesa, só Carlos Drummond de Andrade resolve 4

Uma boa parte da melhor poesia de Carlos Drummond de Andrade foi escrita num período difícil dentro do Brasil e fora. Dentro encarávamos a Revolução de 30, a guerra civil em 1932, o Integralismo, o golpe em 1937, a ditadura do Estado Novo entre 37 e 45. Fora assistíamos o fascismo de Mussolini, o Estado novo de Salazar, a ascensão do nazismo, a guerra civil espanhola e a Segunda Guerra Mundial. Não é por nada que os poemas de Drummond muitas vezes oscilavam entre a tristeza desesperançada e os apelos por esperança e luta. 

O poema de hoje é declaração de fé [maio cética] na poesia. O Elefante meio desajeitado é o melhor, o mais poderoso que um poeta pode contra um mundo hostil, na melhor das hipóteses indiferente. O poema é recitado por ninguém menos que Paulo Autran:


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O elefante

Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos móveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
é a parte mais feliz
de sua arquitetura.
Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.

Eis meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê nos bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano,
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa
as formas naturais.

Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.
É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há na cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.
Mas faminto de seres
e situações patéticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não narrados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.

E já tarde da noite,
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,
caiu-lhe o vasto engenho
como simples papel.
A cola se dissolve
e todo seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão,
jorra sobre o tapete,
qual mito desmontado.
Amanhã recomeço.

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