Skip to main content

Desaparecidos e fantasmas

O fenômeno dos desaparecidos na América Latina a partir dos anos 70 é uma antecipação de coisas que mais tarde se espalhariam, aparentemente, pelo mundo todo. Hoje desaparecem mexicanos, sírios, congolenses e filipinos aos montes, sem falar no uso indiscriminado das famigeradas "black ops" patrocinadas pelo serviço secreto de vários países chiques e cheirosos.

O desaparecimento é um ato de terrorismo de estado, e poderia ser parte desse renascer geral do terrorismo no século XXI. Mas o desaparecimento tem um componente particularmente perverso: enquanto outros atos de terrorismo culminam no momento em que um grupo se responsabiliza pela ação executada, o desaparecimento se apoia, ao contrário, no ato de negar publicamente qualquer responsabilidade do estado pelo desaparecimento.

A atitude se repetia de um país para o outro nos anos 70. Os porta-vozes oficiais do governo insistiam enfaticamente: não houve sequestro, não houve denúncia formal de crime, não houve detenção, nem tortura, nem assassinato, nem ocultação de cadáver. Alguns ainda aventavam a hipótese de que o indivíduo em questão teria fugido do país.

Por causa do silêncio e das negações, as famílias das vítimas eram condenadas a viver num longo presente de pesadelo: sem corpo não há atestado de óbito, nem velório, nem enterro. Sem enterro não há luto. Não se dá à família a oportunidade de cicatrização da ferida que a morte violenta abriu. Esse longo presente a que se submeteu tanta gente foi até usado engenhosamente por elementos do judiciário que negaram a prescrição do crime com base na observação de que não há morte datada e estragaram o chá das cinco de Pinochet com Margaret Thatcher. Transforma-se a falta que a morte traz numa dolorosa ausência viva, permanente.

Creio que estamos nos preparando para uma nova onda de desaparecimentos no Brasil parecida com o holocausto que atingiu o México com Felipe Calderón e sua estúpida guerra ao narco. A prática nunca foi abandonada por aqui mesmo depois do fim da ditadura - há centenas, possivelmente milhares de Amarildos espalhados pelo país inteiro, fantasmas da violência estatal ou feita com a conivência do estado. No México os desaparecimentos se multiplicaram justamente no século XXI, impulsionados por um governo afundado em relações venais e propaganda fútil feita com pompa e circunstância. O moralismo cristão cobra um preço caríssimo pelas suas hipocrisias. E onde é que está mesmo o Amarildo? Tomando chá com os assassinos invisíveis de Marielle Franco? Quantos outros brasileiros pobres desaparecidos não tiveram sequer a visibilidade do Amarildo e são enterrados nas estatísticas? O que dizer das famílias desses fantasmas.

Um filme de terror passado na Guerra Civil espanhola definia esses fantasmas com precisão:

Comments

Popular posts from this blog

Protestantes e evangélicos no Brasil

1.      O crescimento dos protestantes no Brasil é realmente impressionante, saindo de uma pequena minoria para quase um quarto da população em 30 anos: 1980: 6,6% 1991: 9% 2000: 15,4%, 26,2 milhões 2010: 22,2%, 42,3 milhões   Há mais evangélicos no Brasil do que nos Estados Unidos: são 22,37 milhões da população e mais ou menos a metade desses pertencem à mesma igreja.  Você sabe qual é? 2.      Costuma-se, por ignorância ou má vontade, a dar um destaque exagerado a Igreja Universal do Reino de Deus e ao seu líder, Edir Macedo. A IURD nunca representou mais que 15% dos evangélicos e menos de 10% dos protestantes como um todo. Além disso, a IURD diminuiu seu número de fiéis   nos últimos 10 anos de acordo com o censo do IBGE, ao contrário de outras denominações, que já eram bem maiores. 3.      Os jornalistas dos jornalões, acostumados com a rígida hierarquia inst...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...