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100 anos do fim da Primeira Guerra Mundial

“(...) the old 19th century doctrines – 
Romantic humanism, liberal individualism, 
dreams of social progress – 
had all failed to survive the Somme”. 
[Figures of Dissent, 79]

“[…] as velhas doutrinas do século xix – 
o humanismo romântico, o individualismo liberal, 
os sonhos de progresso social – f
oram todos incapazes de sobreviver ao Somme”.


Amanhã comemora-se 100 anos do fim da Primeira Guerra Mundial.

A batalha de Somme, que começou no verão de 1916, consumiu quase 20.000 soldados britânicos apenas no seu primeiro dia. Depois de quatro meses 300.000 pessoas morreram num batalha que resultou, em alguns pontos da linha que dividia os dois lados, num avanço de no máximo 5 milhas na posição das trincheiras. A escala é tão monumental que os seres humanos chafurdados na lama do Somme viraram insetos insignificantes. A carnificina fútil da Batalha de Somme é símbolo da Primeira Guerra Mundial, resultado da industrialização aplicada ao ofício fútil do assassinato em massa. Uma guerra que, na minha opinião, não acaba em 1918, mas em 1945. A carnificina do Primeira chocaria o ovo da Segunda, outro espetáculo de violência no qual os brasileiros tiveram a sorte de participar muito discretamente - por exemplo, pelo menos 20 milhões de russos morreram na Segunda Guerra.

Memorial do artista Rob Heard no Parque Olímpico em Londres
No Brasil o número de assassinatos vai subindo até chegar a níveis absurdos na segunda década do século XII. Não chegamos a uma carnificina como a do Somme na sua intensidade de quatro meses, mas vamos cozinhando em fogo lento números igualmente superlativos sem que nenhuma guerra tenha sido declarada. Algumas das reflexões mais agudas sobre o assunto datam dos anos 90 - por exemplo, o documentário Notícias de Uma Guerra Particular de Kátia Lund e João Moreira Salles. Alguns poucos avanços no começo do século e entramos numa espiral de violência ainda mais intensa. Só no primeiro semestre em 2016, mais de 44.000 mortos por armas de fogo. Os números não são uniformes no país inteiro. A escala monumental mais uma vez dificulta a compreensão humana do problema. Uma carnificina inútil, e desorganizada. Na Primeira Guerra Mundial eram "leões comandados por burros" - os ingleses viam um bando de oficiais elevados ao comando por causa de seu sobrenome fazerem burradas que custavam milhares de vidas. Não temos sequer burros. Nossa guerra é "particular", privatizada, neo-liberal. A polícia, com importantes exceções, acaba apenas participando no banho de sangue matando e morrendo também como moscas. 

Deixemos por um instante essas gentes transformadas em moscas e formigas esmagadas há mais de um século e nessa cabeça de século em que vivemos. Um soldado americano, Henry Nicholas John Gunther, foi o último a morrer na Primeira Guerra Mundial, justamente no dia 11 de novembro um minuto antes do armistício começar a valer às 11 da manhã. Neto de imigrantes alemães, nascido nos EUA em Baltimore, católico. Quando era sargento, escreveu uma carta a um parente aconselhando-o a evitar o alistamento e reclamando das condições de vida precárias no front. Todas as cartas eram censuradas e qualquer crítica era muito mal-vista. Foi punido, por isso e talvez também por sua ascendência alemã que talvez o fizesse suspeito aos olhos dos outros, e perdeu a patente de sargento sendo rebaixado a soldado raso. Os países envolvidos na guerra haviam assinado o armistício às 5 horas da manhã do dia 11. Faltando 5 minutos para que o armistício começasse a valer. Gunther saiu correndo com a sua baioneta na direção da linha alemã, contra as ordens do seus superiores. Os soldados alemães a princípio apenas acenaram e gritaram para que ele parasse mas Gunther continuou correndo e disparou alguns tiros de baioneta até ser metralhado pelos alemães.

Façamos o mesmo no Brasil. Sejamos específicos e digamos Belo Horizonte. Sejamos mais específicos e digamos o bairro Floramar. Luiz Carlos Gomes Coelho era um rapaz de 17 anos voltando para casa depois da escola, quando recebeu uma saraivada de tiros e caiu morto num matagal. A polícia chega e, constatando a cor do morto, completa um boletim de ocorrência que aventa uma briga de traficantes e um ajuste de contas. Não fosse a intervenção vigorosa da irmã, o boletim de ocorrência selaria a estatística. Diariamente os mortos negros e pobres são transformados em "bandidos" e assim desprovidos de história. Morreram porque queriam morrer, mereceram morrer portanto. Luizinho não fumava nem sequer tabaco. Sequer bebia. Tinha começado a querer namorada uma colega da escola e alguém que se julgava dono da menina se julgou no direito de matá-lo. Uma tragédia tipicamente adolescente, tragédia da precipitação violenta, como Romeu e Julieta.

O quanto vale uma vida humana? Uma patente de sargento? Uma noção qualquer de orgulho e honra? Alguma noção exaltada de pátria e nacionalidade? Uma ideia estúpida de orgulho e honra masculina? O quanto vale uma vida? Uma em 45.000 vidas, quanto vale? O que nos cabe celebrar numa data assim? A estupidez humana? 

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