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Coronga Blues: tolerância ou rigor?

Desenho meu
1. Postei há muito tempo atrás sobre uma polêmica envolvendo pai e filho, Increase and Cotton Mather, ambos professores e pastores, no tempo dos julgamentos das "bruxas" de Salem. Os dois eram igualmente contra as bruxas, mas o pai, Increase Mather, dizia que preferia deixar escapar uma bruxa ou outra a matar uma inocente e seu filho dizia que valia a pena arriscar a morte de um inocente desde que nos livrássemos para sempre das bruxas.

2. Esse confronto retórico é recorrente: arriscar-se a ser leniente ou arriscar-se a ser severo demais? Tolerar a existência daquilo que você combate em nome da justiça? Ou agir com máximo rigor contra o inimigo para finalmente destruí-lo? Seria melhor arriscar-se a prender alguns inocentes ou arriscar-se soltar alguns culpados?

3. Diga-se de passagem que o confronto das ideias [e das palavras] apresentado em 1 e 2 tem a beleza de uma coluna Barroca. Pai contra filho, leniência contra severidade, tolerância contra rigor, amarrados numa mesma frase adornada por rocailles de interrogação.

4. Uma coisa fica clara, algo que vai além das duas posições e as incorpora: mesmo com a melhor das disposições para viver eticamente, é simplesmente impossível viver sem correr riscos. Temos que correr riscos, sempre.

5. O Coronga não escapa a esse velho embate retórico travado entre os dois pastores puritanos da Nova Inglaterra. Ele reaparece de forma dramática, igualmente Barroca: é melhor confinar alguns imunes em nome de salvar os outros ou deveríamos deixar sacrificar alguns não-imunes em nome da liberdade geral?

6. No caso da Nova Inglaterra eu fico com Increase Mather e no caso do Coronga eu fico com Cotton Mather. Contradição? Ao contrário. A minha posição tem a ver com a defesa da vida. Nenhuma das duas posições é mais válida que a outra independente do seu contexto.

7. Defender [hipoteticamente, infelizmente] a vida em Salem era combater o rigor dos caçadores de bruxas e defender a vida [agora] no Coronga é combater a ideia de que podemos dispor de vidas humanas. Tolerância com os seres humanos, rigor contra o vírus que existe para matar e se multiplicar.

8. Principalmente porque é odioso defender o sacrifício dos velhos e doentes e dos que, por ventura, sem serem velhos nem doentes, morrem com o Covid-19. Especialmente odioso quando esse sacrifício é defendido em nome da economia.

9. Porque economia [e mercado] não passam de eufemismos para o Capital. E se a volta urgente da "normalidade" significar a volta da submissão completa aos interesses do Capital, eu digo: fiquemos confinados, dando teto e o de comer a quem necessita, sem fome nem desabrigo.

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