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Considerações irresponsáveis de uma Renata qualquer sobre Devoção da Patti Smith



Escrevo em blogs desde 2005. Quando comecei, eu trabalhava numa agência de viagens e minha mesa ficava ao lado da mesa do chefe. Muitas vezes eu estive realmente ocupada, mas outras, na falta de clientes, convinha que eu me mantivesse concentrada, digitando, franzindo a testa enquanto olhava para a tela do computador. Foi ali que comecei a escrever. Antes, eu nunca tinha achado que pudesse fazer isso, que pudesse fazer isso por prazer e, ainda pior, deixar que os outros lessem. 

Eu não sei muito bem onde eu quero chegar com essa introdução, só intuo. Não sei onde quero chegar quando começo a escrever, quase nunca. Tenho apenas uma vaga ideia que me atormenta em forma de pensamentos rápidos, início meio e fim numa só frase, vez após vez, até que... Voilà, estou aqui escrevendo e tentando fazer sentido. Então, meus blogs sempre foram espaços onde eu pensava para fora e isso virou um hábito, um vício, uma tradição. Quero dizer que o discurso não está planejado, ele se faz, irresponsavelmente. 

Ah, lembrei o que eu queria dizer: estou lendo Devoção da Patti Smith e gostando! Bem melhor que Só Garotos

O livrinho

Devoção é estranho, difícil de classificar e, como eu disse, estou gostando. Eu não sou especialista em literatura. Sou uma leitora mediana, nada mais. De qualquer forma, não consigo lembrar de nada encadernado que  tenha estrutura parecida. O que já li de mais semelhante foi justamente um blog e - acabo de verificar - ele não foi apagado ainda. Contudo, a última postagem é de setembro de 2018. Falo de Limas da Pérsia, da Sabina Anzuategui. 

Entre 2007 e 2008, Sabina estava escrevendo seu segundo livro: O Afeto.  O Limas da Pérsia era, então, um espaço generoso de compartilhamento da experiência de escrever. Nele, ela dissertava quase todo dia sobre os motivos que a tinham levado a conceber uma determinada cena, e não outra; cortar determinado parágrafo, e não outro; escolher uma palavra, e não outra. Uma espécie de Making-of do romance que estava sendo gerado. Eu acompanhava e gostava muito. Também matei tempo, no trabalho, franzindo a testa para o computador enquanto lia o blog da Sabina. 

Na minha opinião, a melhor parte de Devoção é justamente a primeira: onde Patti Smith descreve o processo de escrita de um conto. E, digamos, a intuição que tive sobre Só Garotos e que me fez desgostar da autobiografia também está lá, na superfície palpável do texto, num capítulo denominado Como o cérebro funciona. No entanto, o tal capítulo confirmou minha intuição, mas também a explicou e dissolveu a antipatia. 

Terei muita dificuldade se quiser me fazer entender, mas essa é a graça de escrever. Prossigamos.

***

A intuição

Na minha última postagem aqui, que aconteceu em 10 de Setembro, eu escrevi : "[...] é como se esse tipo de artista se voltasse para fora e se fizesse por fora também".  E é a isso que estou definindo como intuição

Às vezes eu penso numa língua só minha, cujo vocabulário é constituído de vivências e pensamentos anteriores, e minha opinião expressa na intuição acima é um bom exemplo disso. A grande questão é que quando se têm duas línguas, elas não necessariamente mantém diálogo regular uma com a outra. Ou seja, se se pensa uma determinada coisa numa das línguas, não é preciso pensar de novo na outra, porque já está pensado. Assim, eu só percebi a necessidade de tradução da minha intuição para o bom e velho português-do-resto-do-mundo quando o Paulo me fez uma pergunta e eu precisei, para além de pensar, comunicar a coisa toda. Desde então, venho trabalhando a resposta e o resultado de tanto pensamento é o seguinte:

A tradução: acho que quando eu escrevi "[...] é como se esse tipo de artista se voltasse para fora e se fizesse por fora também" eu estava falando de um tipo específico de pessoa que lida com a/as vida/artes através de rótulos. Minha impressão sobre Só Garotos era, portanto: Patti viu Jim Morrison performando e pensou "isso é rock, isso é ser roqueiro; legal, também serei roqueiro". O processo seria: ver o rótulo, achar bonito, colar em si". E minha antipatia seria resultado de uma discordância básica, que pode ser expressa na seguinte fala indignada: - Será que não percebem?! O rótulo não é o mote e sim resultado colateral dele. 

***

A explicação da intuição sobre Só Garotos que a Patti Smith inadvertidamente me deu em Devoção

O capítulo de Devoção intitulado Como o cérebro funciona confirmou a intuição que tive sobre a autora: sim, aquele é um cérebro que lida prazerosamente com rótulos. Se para a música, na Nova Iorque de Só Garotos, o rótulo escolhido foi a performance de Jim Morrison; para a literatura, na Paris de Devoção, houve muitos outros: o hotel onde Picasso fez ou deixou de fazer sei lá o quê, a rua por onde Baudelaire caminhou, a magreza de Simone Weil numa foto (tão magra quanto a própria Patti Smith na imagem que motivou essa lenga lenga toda minha), o gorro de Voltaire no museu e a vontade narrada de pegá-lo para si e enfiá-lo na própria cabeça. Chamo tudo isso de rótulo porque andar pelas mesmas ruas que Baudelaire não faz de ninguém um Baudelaire e esse achar o contrário me enjoa, porque eu não sou assim, então me soa como esnobismo. 

A essa altura eu admito que talvez haja uma invejinha aqui dentro. Pois é... Eu reconheço a possibilidade da inveja como algo lógico que não pode ser descartado embora eu não a saiba em mim e talvez ela nem exista. Afinal, no sujeito há sempre espaço tanto para os sentimentos conhecidos quanto para os não reconhecidos. Em minha defesa, porém, apresento o fato de que, quando pude viajar, eu me enfurnei nos cafundós da Amazônia, onde só se chega uma semana por ano e não existem turistas. Minha Baudelaire (Clarice Lispector) nunca esteve lá; meu Picasso (Chagall) provavelmente nunca tenha ouvido falar em Lago do Acará. E talvez eu esteja praticando um outro tipo de esnobismo me privando de conhecer Paris. Talvez... É possível, mas agora tanto faz! Com a pandemia de covid-19 e a crise econômica que virá na sequência, esse dilema estará resolvido: vou ficar em Minas mesmo, sem alternativas.  Mas... Evitando a dispersão total e voltando ao assunto abstrato com o qual tenho tecido este texto, outra coisa que escrevi na minha última postagem sobre a Patti Smith de Só Garotos foi: "[...] esse tipo de artista que é, em constituição física, sua própria arte, contraditoriamente se revela muito pouco." 

Agora sei, depois de matutar bastante, que os rótulos demarcam até onde se pode ir com o escrutínio e é esse fato que deu origem a minha antipatia. Eu já tinha dito exatamente isso, na postagem anterior, usando minha língua interna ao reclamar  que "esse tipo de artista [...] se revela muito pouco". Acontece que ainda não tinha ficado claro no bom e velho português-do-resto-do-mundo. Não estava dito, por exemplo, que eu detesto demarcações. A interdição das áreas profundas de um sujeito sobre o qual me debruço aparece para mim quase como uma ofensa pessoal. Tudo que freia minha curiosidade detalhista me irrita e Só Garotos é um passeio pelos rótulos que Patti Smith colheu e colou em si mesma no decorrer de sua vida, sem oferecer qualquer acesso bônus a algo abaixo da epiderme. Esconjurei, portanto, aquela autobiografia que me impedia de chegar aos quartos interiores, aos espaços mais íntimos da história de vida da autora e, portanto, só rascunhava a história maior que incluía a autora. 

Minha antipatia se dissolvendo

Achei bonito o título Como o cérebro funciona, mas segui ignorando por um bom tempo o que ele anunciava. Fui pega de surpresa quando, depois de seguir a trilha de rótulos já mencionados - o hotel onde Picasso fez ou deixou de fazer sei lá o quê, a rua por onde Baudelaire caminhou, a magreza de Simone Weil numa foto - vi-me diante do seguinte parágrafo: 


Lembro de ter visto o gorro de Voltaire num mostruário de vidro num museu qualquer. Um gorrinho de renda cor da pele e muito humilde. Desejei intensamente aquele gorro, com um estranho fascínio que não me abandonou, junto com a ideia supersticiosa de que quem usasse aquela peça poderia ter acesso a vestígios dos sonhos de Voltaire. Tudo em francês, claro, tudo da época dele, e naquele momento me ocorreu que as pessoas que sonharam através dos tempos sonharam com gente de sua época. Os gregos antigos sonhavam com seus deuses. Emily Brontë, com as charnecas. E Cristo? Talvez ele não sonhasse e mesmo assim soubesse tudo que podia ser sonhado, cada combinação, até o fim dos tempos. (Devoção, p.38)

 

Eis que finalmente a autora se revela e, ao fazer isso, reconhece a incompletude dos rótulos. E mais!, ela explicou a minha intuição! Sim, era também isso que estava me incomodando no Só Garotos inteiro, mas principalmente no momento em que Patti Smith escolhia a música como carreira por causa do corpo, dos movimentos e das caras e bocas de um roqueiro menor dentre os maiores. Jim Morrison já era, assim como acontece a qualquer um quando chega a compor com outros o mainstream de alguma expressão. Portanto, era inútil tentar ser o que já estava estabelecido. Ao invés disso, era preciso ser com eles, concomitante, mas outro. Como alguém teria podido ser Patti Smith e vender autobiografia para o mundo inteiro se não tinha entendido isso?!

Ah, como eu sou arrogante! Euzinha aqui, uma renatinha qualquer, achei que tivesse descoberto a América sozinha e pela primeira vez! Mas a Patti, humildemente e sem saber de nada, já estava me dizendo no primeiro capítulo do livrinho fechado e esquecido no canto da estante que aquela era a forma que seu cérebro funciona. Eu brava porque não consegui ultrapassar a epiderme de Só Garotos, e ela concordando comigo, mas acrescentando que era preciso que eu tivesse paciência, só isso. A surpresa  boa que senti com a conclusão do parágrafo sobre o gorro de Voltaire me fez voltar algumas páginas de Devoção para reencontrar um trecho que já tinha vagamente me chamado a atenção na primeira leitura. Vou contextualiza-lo antes de expô-lo.

Antes do parágrafo em questão, Patti contou que tomou seu café da manhã, porque estava indo a Paris, daí citou títulos e o nome de James Joyce, de Simone Weil, de Nabokov e o escambau. Rótulos e mais rótulos! Esteve num jardim onde Sartre também esteve, pisou as ruas que Baudelaire também pisou, etc., etc., etc. Até que acabou exausta numa cama de hotel - o mesmo onde Picasso fez sei lá o quê - assistindo televisão. Mas, altas horas da noite, o aparelho transmitia um campeonato de patinação artística. E foi então que ela escreveu: 


No meu sono o gênio produz combinações, regenerações. O determinado rosto-coração de Simone funde-se ao rosto dessa jovem patinadora russa. Cabelo escuro curtinho, olhos escuros que atravessam céus mais negros. Escalo o flanco de um vulcão entalhado no gelo, calor extraído do poço de devoção que é o coração feminino. (Devoção, p.24)

 

Eu preciso pensar mais no significado dessa última frase. Contudo, o processo de criação de Patti Smith está descrito sem véus. É assim que seu cérebro funciona: uma cara se funde com a outra que mistura com o café da manhã, com a exaustão, com o Jardim sei lá das quantas e... Patti Smith está sendo com eles e não no lugar deles, que nunca será seu. 

Gostei de saber! Da mesma forma que me agradava saber porque a Sabina cortava um parágrafo e não outro, escolhia uma palavra e não outra. Gostei de entrar no funcionamento de um cérebro que não o meu. Mesmo! Em Devoção, diferente do que acontece em Só Garotos, a autora se revela ainda que discretamente e em meio aos rótulos. 

Conclusão

Ainda não terminei de ler o livrinho sobre o qual estou opinando. Talvez eu escreva mais sobre ele quando acabar, mas também pode ser que não. A estrutura estranha de Devoção se fez assim: o primeiro capítulo é o já mencionado Como o Cérebro Funciona (que inclusive eu disse ser o meu preferido sem ter lido o último), o segundo é o conto intitulado Devoção e o terceiro eu ainda não sei o que será, mas o título é Um Sonho Não é Um Sonho. Já li o conto e não gostei por um motivo simples: "narciso acha feio o que não é espelho". 

Dostoiévski dizia que o público é um mal necessário. Essa frase estava não sei em que página de um livro feito das cartas que ele escreveu para o irmão. Penso agora que, no final das contas, eu sou o pior tipo de público: aquele que acha que sabe o que está sendo apresentado. Na música, eu sou a chata que vai dar uma palinha porque arranha canto e violão. Numa exposição de arte eu sou a chata que estudou um pouco de perspectiva e faz desenhos medonhos, então, fica dando pitaco na tela alheia. E na literatura... Bem... Na literatura eu sou a pessoa que escreveu esse textão que não interessa a ninguém. 


Comments

Adoro ler os seus textos! Que honra você escrevê-los e postá-los aqui! Fico aguardando um possível próximo capítulo sobre o livro da Patti Smith. Me lembrei de um texto que li ontem de madrugada sobre as memórias de um escritor que eu admiro muito [Terry Eagleton]. Ele confessava que não gostava do gênero biografia porque acha uma furada a gente pensar que "a verdade de um texto reside na consciência do seu autor". E eu pensei que um texto não tem uma só verdade [se tivesse uma só, teria que ser um texto muito, muito previsível] e que as sei lá quantas verdades de um texto residem nas cabeças dos seus leitores, uma comunidade que inclui até o autor.
Amo as biografias que misturam crítica literária. Gosto principalmente daquelas bem dramáticas..rs. A da Clarice Lispector do Benjamin Moser é um primor. E comecei com esse gosto há mais de uma década atrás, lendo uma biografia da Sylvia Plath intitulada Amarga Fama, de uma tal Anna Stevenson. É como vc comentou na postagem sobre o Só Garotos, não só de exatidão se faz uma História. Mas as conversas fiadas, os exageros, os silêncios também contam muito sobre uma sociedade e seus valores.
Ah e sobre eu escrever aqui: a honra é minha! :) Desculpa se eu extrapolar os limites do bom gosto e da inteligência às vezes.

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