No início do isolamento social, precisei comprar um microfone para gravar os áudios das minhas aulas. Não encontrei em nenhuma loja aqui, nem na cidade ao lado, nem na cidade há duzentos quilômetros. Sempre que eu comunicava o que queria, os lojistas diziam: - ah, aquele microfone de live.?.. tem não.
A única live que assisti durante o boom das lives foi a do Caetano. Enquanto eu ouvia as músicas e as coisas que ele dizia, pensava: esse país não merece esse homem.
A essa altura da pandemia, as lives saíram de moda por aqui. Em contrapartida, estão acontecendo muitos eventos de "aperfeiçoamento" para professores. Todos os bancos, todas as indústrias, todas as associações de industriais, trabalhadores rurais, de proprietários ruais, de donas de casa, absolutamente todo mundo que não é professor quer ensinar aos professores como é que se faz para dar aulas. O interessante é que esses grupos, essas associações, essas pessoas, contratam acadêmicos da área da pedagogia para ensinar o que é educação e como é que uma aula deve ser. Ou seja, contratam formados em educação que nunca deram uma aula sequer em educação básica. Dia desses a escola reencaminhou um e-mail com propaganda de live de aperfeiçoamento para professores em que a palestrante tinha vinte e seis anos e era pós-doutorada num país qualquer da Europa. Só fazer as contas, né. Nem como pedagoga essa aí tinha experiência. O título da transmissão era blá blá blá: alguma coisa EM SALA DE AULA.
Eu estava reparando que as pessoas que estão dando palestras em lives de aperfeiçoamento para professores adoram inventar terminologias. Então, ao menos três quartos do tempo dos eventos é gasto explicando a terminologia que se vai usar para pensar a educação e as aulas. No tempo que sobra, uma vez que o vocabulário inventado já esteja compartilhado, fala-se muito sobre a terminologia dos autores consagrados. Tenho a impressão de que ninguém decora a terminologia de ninguém e a coisa vira uma Torre de Babel sem tijolos. Os chats se enchem de "boas noites", "é um prazer estar aqui", "que maravilha de evento", etc. Mas é claro que, se tratando de reunião virtual de professores, sempre aparecem os revolucionários e os apocalípticos. Por isso os chats também nos presenteiam com alguns "isso nunca vai dar certo", "em que mundo essa senhora vive?", "a solução é acabar com tudo" e o clássico "por que não matam a gente de uma vez?"
Não tenho paciência com esse tipo de evento online. Ao vivo a gente ainda se distrai com a roupa alheia, analisa os penteados, faz cálculo mental dos metros quadrados do ambiente, desenha a caricatura do beiçudo que preside a mesa, procura algum conhecido na plateia, lê, compartilha experiências de sala de aula com o colega ao lado que acabou de conhecer... E, vez por outra, dá até uma olhadinha para o palestrante e anota alguma palavra nova no caderninho que comprou no boteco em frente ao ponto do ônibus. Mas online, só tem a cara do pedagogo pra gente olhar. E ele (ou ela) fica lá, ora listando o glossário do projeto que nunca é comunicado, ora elogiando o aluno, esse ser encantado. É demais para qualquer professor de verdade que queira manter a sanidade mental por mais alguns anos.
Eu tenho uma teoria sobre a educação básica brasileira: ela nunca vai entrar nos eixos. Muita gente tem essa teoria e atribui a culpa à vontade dos dominantes de continuarem dominantes. Meu raciocínio, porém, é um pouco diferente.
Joaquim Nabuco escreveu: "a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil". Eu vejo isso acontecer, dentre outras áreas, na forma como esse país pensa a educação. Explico: os professores mais revolts e apocalípticos costumam divulgar em sala de aula o fato de que os dirigentes desse país não têm interesse em ver a população aprendendo a pensar por conta própria e que é por isso que as escolas não são incentivadas a irem além do ensino das quatro operações básicas e da leitura rudimentar. Como aluna, eu escutei esse discurso de vários professores, como professora, eu vi sair da boca de colegas. Mas eu observo que a própria relação do estado com o professor reflete um complexo de capitão do mato. O profissional que lida com a atividade-fim é considerado um ser menor, incapaz de opinar, de estudar e de pesquisar sua própria atividade. Ou seja, um escravo cumpridor de ordens, a quem a culpa do insucesso do processo é atribuída pela adição desobediente e criminosa do ingrediente preguiça, que por sua vez é visto como um mal congênito dessa gente que precisa ser disciplinada.
Todos os programas governamentais que presenciei acontecerem - com exceção de apenas um, intitulado Pacto Nacional Pela Educação, que foi abortado assim que o último golpe de estado começou a se desenrolar - partiram do pressuposto de que era preciso contratar analistas, gente bem formada e sem experiência, cuja atividade seria se manter em salas bem ventiladas, tagarelando com seus pares sobre as características marcantes dos documentos governamentais que já haviam sido gerados em outras salas mais bem arejadas. Depois, eles fariam eventos, onde compartilhariam terminologias com os bossais que trabalham diretamente com o bossaizinhos que são o futuro desse país. A realidade concreta da educação brasileira nunca foi analisada por essa gente. Aliás, eles entendem por realidade aqueles números gerados pelas provas diagnósticas que eles inserem à força no calendário já apertados das escolas.
Bem, eu tô em sala de aula. Eu esbarro na realidade todo dia e ela me machuca, ela me alimenta, ela me espanta, ela faz minha pressão arterial subir. E o que eu vejo? Muitas coisas. Dentre elas, vejo alunos míopes sem óculos porque os pais não têm dinheiro para pagarem o exame de vista, ou pagaram o exame mas não tiveram dinheiro para fazer os óculos. Vejo faltar papel higiênico. Vejo as descargas do banheiro estragarem definitivamente depois de inúmeros reparos. Vejo aluno fazer vaquinha e comprar um tanque para ser instalado no banheiro masculino que está sem pia. Vejo livros chegarem e não terem lugar para serem guardados porque a biblioteca vira lago quando chove. Vejo vizinhos entrarem na calada da noite e roubarem computadores, botijões de gás, impressoras, e tudo mais que puder ser vendido em troca de droga. E também vejo o juiz fazer vista grossa porque o vizinho que fez isso é parente de gente grande da cidade. Vejo aluno jogar carteira na direção do professor e depois postar mensagens e memes ameaçadores contra colegas e professores, dizendo que vai repetir o feito de Goiânia, o feito de Janaúba. Vejo o colegiado se reunir apavorado e decidir pela transferência do aluno, única ferramenta disponível, como sinalização de que piadas assim são intoleráveis por banalizarem e incentivarem a ação. Depois, vejo a inspetora/pedagoga vir com o pai do menino dizer que ele não fez nada de errado e que vai continuar na escola, na mesma sala, no mesmo turno, onde os colegas já estão prontos para recebe-lo, muitos com medo, outros triunfantes e dispostos a tornarem as piadas reais a qualquer tempo. Vejo professores terem dois, três empregos, para transformarem os salários de fome em um salário descente. Vejo o governo, em cumplicidade com a superintendência, destruir o planejamento anual com eventos obrigatórios surpresas para fazerem bonito e virarem notícia de jornal. Vejo o professor não ter ferramentas para fazer o aluno estudar. Vejo tanta coisa que não consigo contar! E aí, aparece o banco X me dando aperfeiçoamento online cujo conteúdo profere que todo o problema da educação brasileira ou é ideológico, ou é resultado de preguiça/má-formação do professorado. E que eles têm a solução: uma terminologia nova!
Desculpa, mas tenho mais o que fazer.
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