Skip to main content

Poesia minha: Conto de Fadas



Eu me lembro daquela noite
em que me deitei acordado
no vagão mal iluminado,
num terno êxtase de agitação
a maçã do meu rosto queimando
o frio impecável da fronha 
e o coração batendo com os pistões 
da locomotiva que puxava o trem
e me levava noite afora
para longe de Belo Horizonte
para longe da minha infância
para longe da calma caiada 
da casa da minha mãe,
para o país desconhecido da vida adulta
para nunca mais voltar.

                                                                               Eu imaginava minha mãe
passando a vista cansada
em tudo o que eu deixei para trás
no quarto que não era mais meu
numa caixa de papelão pardo
dormindo, cobrindo-se de pó
debaixo da cama estreita.


Da minha mão as curvas macias de um seixo,
dos ouvidos o ressonar de veludo do vento,
dos olhos o amarelado pesado da lua prenha,
da boca o hálito da fome,
das narinas o cheiro do couro curtido 
no assento do trem,
do coração o rugido sincopado do trem.




Eu tinha 15 anos
quando cheguei à cidade
onde eu não conhecia ninguém.



Um deserto é o lugar para se perder de si mesmo
e finalmente se encontrar consigo mesmo.

Comments

Borges Machado said…
Fui imaginando os detalhes da despedida. É emocionante, uma cartografia da memória, dos detalhes que saltam do papel para dialogar com as nossas despedidas, nossas inseguranças, nossos recomeços. Belo poema.

Popular posts from this blog

Protestantes e evangélicos no Brasil

1.      O crescimento dos protestantes no Brasil é realmente impressionante, saindo de uma pequena minoria para quase um quarto da população em 30 anos: 1980: 6,6% 1991: 9% 2000: 15,4%, 26,2 milhões 2010: 22,2%, 42,3 milhões   Há mais evangélicos no Brasil do que nos Estados Unidos: são 22,37 milhões da população e mais ou menos a metade desses pertencem à mesma igreja.  Você sabe qual é? 2.      Costuma-se, por ignorância ou má vontade, a dar um destaque exagerado a Igreja Universal do Reino de Deus e ao seu líder, Edir Macedo. A IURD nunca representou mais que 15% dos evangélicos e menos de 10% dos protestantes como um todo. Além disso, a IURD diminuiu seu número de fiéis   nos últimos 10 anos de acordo com o censo do IBGE, ao contrário de outras denominações, que já eram bem maiores. 3.      Os jornalistas dos jornalões, acostumados com a rígida hierarquia inst...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...