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Sobre o amor

Uma aura quase cheiro de desastre:
dois olhos duros amarelos de gato
olhando pra mim e o meu desejo inato
de esconder pelo menos uma beirinha
da verdade embaixo da manga,
do sapato, me estudando
com sobriedade especuladora
e a intenção atenta e indiferente
dum bebê (muito além desse sonoro
peido humano, tão comum hoje em dia,
que atende pelo nome de audácia).

E eu mal-acompanhado
por um desses
dessa tribo de gente que mora
na beira do mar, mas só sabe
comer sardinha enlatada
que me atira logo, cheio de certeza:
“esse tipo aí eu conheço é pelo cheiro.”

Eu retruquei afiado
e seco como um jacaré:
“caráter é caroço e casca:
punhal de que não se vê o cabo.”

Meu mau-companheiro aceitou meu truco
e pediu um longo seis em forma de aparte:
“Eu digo e repito quantas vezes você quiser ouvir o que eu sempre digo desde que virei gente: esse negócio de amor é uma bela duma balela. É tanta gente por aí dizendo que ama isso, que ama aquilo, que ama não-sei-o-quê, mas a gente só ama mesmo só o que ainda não tem; amor a gente encosta um dedinho de leve nele, ele abre as asas e vai embora. O melhor nessa vida é largar mão de tudo e não ter precisão de nada, principalmente o que não pode ser seu sem esforço além do seu próprio puro ordinário. Melhor mesmo fica tudo se o que a vida nega ao caboclo nessa vida também nunca interessa nem a ele nem a ninguém. Então a gente vai e se esconde na barra da saia da gente mesmo e finge acreditando que tudo ou é bobagem ou é obrigação e se esconde principalmente da gente mesmo, que o desprezo que a gente sente pela gente mesmo é o pior dos venenos sem soro. Esse povo todo fala de amor. Pra mim não tem nem sentido nenhum tentar satisfazer nada: tem é que arrancar tudo o que parecer amor desse corpo, que esse corpo aliás é uma outra bela duma balela, uma puta velha vendendo seu paraíso de cartolina para retardados mentais, uma porcaria duma gaiola em que a gente vive dentro assim preso sem conseguir nem se sentar nem se por de pé até chegar o dia da gente pedir arrêgo e ir embora dele e morrer.”

Mal acompanhado além da conta,
tentei de novo ser só sucinto:
“o amor não morre;
ele vai é embora,
e aí quem morre é você,
fulminado, carcomido,
cego, e pior:
sem nem saber que.
E além do mais você me desculpe,
mas coragem não existe
sem descrer na boa sorte.”

Ele não vacilaceitou nem essa minha última proposta de empate e pediu oito:
“O que eu sei é que o tal amor bate as asas e vai embora e aí ficam os dois com a carne pendurada no açougue, um de frente pro outro, tentando cada um sozinho acender um fósforo numa lata cheia d’água.”

Azar.
Eu baixei as malas no chão e tranquei
a porta do quarto brigando com as chaves
e quando eu me virei lá estava ela,
nua, descalça, nem vergonha, nem modéstia:
a fome.

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