Skip to main content

Repente 4


































[foto: filhos de meeiros no site http://newdeal.feri.org/]


Dando seguimento ao repente com Sabina, retomo outra criatura sensacional [e geralmente muito incompreendida] dos contos de William Faulkner: Abner Snopes. Aqui ele termina de borrocar acintosamente com bosta de cavalo o tapete importado da sala do poderoso Major de Spain, onde ele vive uma vida de miséria como meeiro no Mississippi. Antes da Guerra Civil essas figuras conhecidas depreciativamente como "White Trash" valiam menos que os escravos que faziam todo o trabalho e eram propriedade valiosa dos senhores; agora estão todos na mesma situação mas a tensão racial continua. Abner quer ensinar ao seu filho [o protagonista do conto] alguma coisa sobre identidade de classe, mas o filho não aceita a lição do pai:

"Seu pai não abrira mais a boca. E não abriu a boca de novo. Ele nem sequer olhou para ela. Apenas plantou-se rígido bem no centro do tapete, com seu chapéu na cabeça, as sobrancelhas cinza-ferro desgrenhadas contraindo-se ligeiramente sobre os olhos cor de seixo rolado enquanto ele parecia examinar a casa com deliberação breve. Então ainda com a mesma deliberação ele deu a volta; o menino o viu girar na perna boa e viu o pé capenga girar em arco deixando um último borrão sobre o tapete. Seu pai nunca sequer olhou para o borrão, nem sequer uma vez ele olhou para o tapete. O negro segurou a porta. Esta fechou-se atrás dos dois, deixando para trás o som de uma lamúria feminina histérica, indistinguível. Seu pai parou no topo da escadaria e limpou as botas na beirada do degrau. No portão ele parou outra vez. Ficou ali parado por um instante firmemente plantado no seu pé cambeta, os olhos voltados para a casa. 'Bonita e branquinha, né mesmo?' ele disse. 'Aquilo é feito de suor. Suor de crioulo. Vai ver que ainda não está branco o suficiente para ele. Vai ver que ele ainda quer misturar um pouco de suor de branco nela.'"

Comments

achei difícil de entender só pelo fragmento... li duas vezes, mas o texto é condensado, tenso.

fiquei pensando se não haveria uma maneira mais suave de traduzir as cores... para destacar mais os verbos e substantivos, e menos os adjetivos.

digo isso sem conhecer o original, apenas porque esses qualificativos complexos dificultaram minha compreensão, no início.
Faulkner tem esse estilo anarquico, e eh mesmo dificil entender so por esse trechinho. Um ponto que me interessa aqui eh que esse pai tem um discurso que mescla extrema sabedoria do ponto de vista da consciencia de classe e extrema estupidez do ponto de vista racial [os termos que ele usa sao muito ofensivos, dos que gerariam uma briga de sopapos nos Estados Unidos]. Entao o filho fica dividido entre o que ele aprende e aprecia e conhece do pai e o que ele rejeita e detesta - eh dificil para esse filho [pra qualquer filho] separar mecanicamente as duas coisas, fica tudo misturado e o discurso do pai eh ao mesmo tempo um tesouro para vida e uma maldicao para vida do menino.

Popular posts from this blog

Protestantes e evangélicos no Brasil

1.      O crescimento dos protestantes no Brasil é realmente impressionante, saindo de uma pequena minoria para quase um quarto da população em 30 anos: 1980: 6,6% 1991: 9% 2000: 15,4%, 26,2 milhões 2010: 22,2%, 42,3 milhões   Há mais evangélicos no Brasil do que nos Estados Unidos: são 22,37 milhões da população e mais ou menos a metade desses pertencem à mesma igreja.  Você sabe qual é? 2.      Costuma-se, por ignorância ou má vontade, a dar um destaque exagerado a Igreja Universal do Reino de Deus e ao seu líder, Edir Macedo. A IURD nunca representou mais que 15% dos evangélicos e menos de 10% dos protestantes como um todo. Além disso, a IURD diminuiu seu número de fiéis   nos últimos 10 anos de acordo com o censo do IBGE, ao contrário de outras denominações, que já eram bem maiores. 3.      Os jornalistas dos jornalões, acostumados com a rígida hierarquia inst...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...