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Sobre história e racismo [uma reflexão indireta, portanto, sobre a polêmica sobre Monteiro Lobato]

Yale costumava exibir um certo retrato de Elihu Yale, homem que doou dinheiro, uma boa biblioteca e, assim, deu seu nome à instituição. Nesse retrato constava [no canto esquerdo como vocês podem ver] um escravo de bandana que segura uma carta de joelhos ao pé de Elihu. O retrato de Elihu [e sua impressionante peruca] foi exibido durante décadas numa das salas mais importantes da universidade, o “Corporation Room” onde os trustees se encontram. Você pode vê-lo, por exemplo nessa foto da revista Time, tirada durante a cerimônia de despedida de Charles Seymor, reitor da universidade de 1937 a 1951 [e note como a foto da revista já corta o inconveniente escravo quatro anos antes do começo do Civil Rights Movement de Martin Luther King].

Em 2007 o retrato e seus dois personagens saíram desse lugar símbolo de prestígio e poder para algum depósito bem trancado [suponho], gesto simbólico que foi acompanhado de uma justificativa meio desajeitada: o quadro daria a impressão incorreta que Elihu era proprietário de escravos; o escravo teria sido adicionado posteriormente à pintura por ser um símbolo de status comum no século XVIII - podemos ver, à direita, pela janela, os navios do poderoso mercador.

A retirada do retrato do lugar onde estava é, para mim, digna de aplauso. Junto com a chegada de um retrato de Edward Bouchet [primeiro aluno negro de Yale] a um lugar de destaque na principal biblioteca da universidade ele tem valor simbólico importante. Mas o sumiço completo daquele primeiro retrato é uma lástima, porque é um apagamento do passado. Agora podemos todos esquecer que os grandes homens das Américas exibiam seres humanos escravizados junto com suas perucas lustrosas e outros objetos de status e fingir que eram todos abolicionistas, pelo menos de coração, desde sempre? E porque será que ninguém fala sobre os "produtos" que os navios bucolicamente ancorados no retrato levavam? Será que isso levaria a conclusões como as que chegaram em Brown em 2006, onde todo mundo se lembrava de um irmão Brown [o abolicionista] e esquecia o outro [o mercador de escravos]?

Comments

Anonymous said…
Além de tudo que vc disse, que quadrinho feio, né?!
Mal pintado, um cara horroroso e com uma peruca ainda mais horrorosa...
sabina said…
O Marcelo Coelho escreveu um artigo bacana sobre o Lobato, vocês leram?
Ainda não, Sabina. Nesse assunto eu me sinto às vezes entre dois campos opostos já entrincheirados e eu fico sem querer entrar em nenhuma das duas trincheiras. Minha opinião sucinta é: sim, trechos dos livros do Monteiro Lobato são rascistas, assim como trechos de vários outros autores. Não faz mal algum constatar isso, na sala de aula ou na mesa do bar. Agora, a constatação de que determinados trechos de Shakespeare, por exemplo, são rascistas ou machistas é válida e ao mesmo tempo insuficiente, porque tem muito mais coisa ali. Enfim, preguiça de discutir isso no meio de um tiroteio de gente que acha que Lobato não é rascista e de gente que acha que Lobato é o capeta da Casa-Grande...

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