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O pequeno psicopata que vive dentro de cada um de nós

Martin Shkreli sucesso das finanças para a indústria farmacêutica
Estamos num mundo que promove sem tréguas a ideia de que a cobiça em estado puro não é apenas um valor positivo [o que já seria uma proposição temerária] mas um valor supremo, que deveria nos "libertar" das "distrações" da empatia e do remorso. Livre das patéticas amarras da moral, o capitalismo puro ou selvagem nos ofereceria uma meritocracia radical capaz de trazer a felicidade suprema, mas apenas aos que a merecem de verdade, por darem os maiores "retornos" aos seus "investidores" produzindo o máximo "valor" no mínimo de tempo. Vide Martin Shkreli, que aumentou o preço do Daraprim, um remédio essencial para o tratamento da AIDS e da Toxoplasmose, de US$13,50 para US$750 e promete fazer o mesmo com um remédio para tratar do Mal de Chagas viu as ações de sua empresa aumentarem US$1.50 para US$28 por ação. Como se vê, o Senhor Mercado aprova a psicopatia de Shkreli.


Philippe Pinel falava em "manie sans delire"
Este mundo cada vez mais descarnado provoca entre nós uma epidemia de psicopatia. Porque para os psicopatas palavras como "gostar" ou "amar" são nada além de um aglomerado de vogais e consoantes, sem a menor ressonância afetuosa. E hoje em dia eles são legião. Dizem os cientistas que 1% da população masculina adulta [quase todos os psicopatas são homens] padece do "sofrimento da alma" [tradução literal do termo psicopatia, inventado na Alemanha no século XIX]. O termo desde sua origem esteve ligado ao comportamento criminoso e à ideia corrente no século XIX da criminalidade sem remorsos como uma terrível doença da alma. 

Ted Bundy
Mas quando me refiro a uma epidemia, não me refiro aos diagnosticados, os catalogados, os devidamente registrados no sistema jurídico legal e encarcerados. Nos Estados Unidos, entre 15 e 25% da população carcerária foi diagnosticada como psicopata e serve de cobaia para pesquisas sobre o assunto, recebendo os costumeiros 1 dólar por hora que um preso recebe quando trabalha. Sobram ainda um milhão de sujeitos psicopatas vivendo por aí. Aposto que muitos fazem imenso sucesso e são mesmo objeto de inveja nos ambientes sofisticados de Wall Street e em muitos outros ambientes em que a vida significa nada além da luta de todos contra todos pelo poder e pelo seu símbolo supremo, o dinheiro. A fantasia coletiva sobre a psicopatia postula uma eficiência implacável, que não se curva a absolutamente nada na busca dos seus objetivos. Os psicopatas produtivos são nossos modelos de conduta, modelos de sucesso nas capas de revistas e jornais.

O psicopata eficiente em 1991
Dizem que uma em cada três pessoas que entrevistaram um psicopata sentiram na presença dele uma aversão visceral. Os mesmos cientistas que constataram esse fenômeno de reconhecimento dão uma explicação patética, muito em moda entre cientistas sociais hoje em dia: essas pessoas estariam exercendo uma capacidade primal de identificar um predador perigoso. Acho que se trata de um reconhecimento instintivo da parte de um terço de nós de que estamos na presença de um psicopata frente a frente com a representação mais perfeita do mundo em que vivemos. Isso explicaria também a fascinação da nossa cultura pela figura do psicopata, objeto de uma ambígua fascinação horrorizada. 

O psicopata eficiente em 2013
Note que a fantasia cultural atribui aos psicopatas uma eficiência sobre-humana que os psicopatas de carne e osso [pelo menos os que acabam na prisão] geralmente não têm. E estamos todos sendo constantemente requisitados a copiar o comportamento implacavelmente eficiente que associamos aos psicopatas em nossas fantasias midiáticas. Os psicopatas de carne e osso, pelo menos aqueles que cairam na rede do sistema legal, estão longe desses gênios que ninguém consegue capturar muito menos incriminar: eles têm três vezes mais possibilidade de voltar para a prisão um ano depois de serem libertados. Livres só aqueles capazes de, nas palavras de um dos pioneiros no estudo da psicopatia, "esconder atrás de uma mímica de emoções normais, inteligência fina e responsabilidade social uma personalidade grosseiramente incapacitada e irresponsável". Esse mesmo
Hervey Cleckley
pioneiro, Hervey Cleckley, já em 1943, alertava também que o extremo individualismo e competitividade da cultura dos Estados Unidos promoviam a psicopatia. Seu trabalho foi esquecido e retomado pelo canadense Robert Hare que afirmou que os negócios são a vocação mais conveniente para os psicopatas, que ali estariam livres dos mecanismos de controle que potencialmente poderiam inibí-los em outras profissões. Crueldade, completa falta de consciência social e dedicação absoluta ao sucesso não são apenas
Robert Hare
características dos atuais capitães da indústria de finanças; são qualidades que eles propagam com absoluta convicção nas escolas de economia e administração de empresas como necessárias para dar direção e sentido às "reformas" de setores em "crise" como a educação e a saúde. Não sei mas acho provável que a psicopatia tenha o mesmo "sucesso" da depressão, que tinha critérios clínicos durante os anos 50 e 60 que quase ninguém atendia e que hoje afeta todo mundo, inclusive o cachorro da vizinha. São duas metades da mesma terrível moeda que circula hoje com mais vitalidade e violência do que nunca. Quem não tem estômago para libertar seu "psicopata interior" e vencer na vida talvez tenha o destino de ser mesmo um eterno deprimido. Tendo em vista que a medicação dos deprimidos tem antes de tudo o objetivo de mantê-los como indivíduos produtivos, talvez a indústria farmacêutica na mão de Shkreli e companhia invente novas drogas que ao invés de combater aumentem e fortaleçam o pequeno psicopata que vive dentro de cada um de nós.




Comments

Pedro da Luz said…
Maravilha de texto e de análise, parabéns!!!
Obrigado, Pedro!

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