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Um fragmento de um diário


Uma pessoa amiga me mostrou em confidência esse belíssimo fragmento do seu diário. Insisti e ela permitiu que eu compartilhasse aqui o que ela escreveu, mas em anonimidade. Espero que vocês gostem tanto quanto eu.

2004

Prometo não me esconder atrás de mim mesmo. Prometo deixar no papel nada que não seja meu sangue.
A onda vem e eu perco o pé, mas não me desespero. Solto o corpo e sinto o silêncio vibrar nele a paz do esquecimento. Um vento denso de água e sal balança meu corpo feito um saco plástico vazio de mim. Imagino meu esqueleto solto dançando por dentro em ondas de sangue ainda mais denso. A próxima onda chega e me puxa mais longe. Respirar me custa, me cansa subir. Devagar aos poucos tomo ar e volto para baixo d’água. Não me sinto preso. Não estou me afogando ainda, agora. Não estou vencido ainda que passe agora por mim o salva-vidas que vem ajudar alguém mais longe da praia que eu. Não peço ajuda. Não é orgulho. Estou à deriva por bem mais de meia hora. Na volta o salva-vidas me vê e me oferece carona de volta à praia. Não quero dizer que sim, quero me calar, por meio instante vacilo em aceitar. Meio instante, não mais. Não mais que meio instante. O salva-vidas me puxa bruscamente. Saio andando sozinha com a água na altura da barriga. Eu me sento no sol mudo do mormaço na areia branca na praia da minha infância. Volto no dia seguinte. E cada vez o meu corpo fica mais mole: pele, carne, osso um pouco mais frouxos. Um monte de pedras desmorona uma vez e fica mais difícil refazer o monte. Remontado meio frouxamente ele acaba caindo outra vez, ainda mais desconjuntado. O meio instante de vacilo fica um pouco mais longo. A saudade da leveza, de estar vazia, da paz, do silêncio, do esquecimento do mundo e si mesma fica um pouco maior. Uma progressão lenta, gradual. Acréscimos ínfimos. Uma paciente erosão por dentro. E sempre o medo de morrer. Um pouco menos de medo a cada mergulho. Mas sempre o medo. Estar viva vale? Antes da chegada de uma nova tormenta, no prazer de estar deitada na praia no sol na areia, penso que sim, que vale tanta pena.
Só dei conta de contar aqui a melhor parte do teorema. Ia deixar sangue, prometi, eu sei. Não é por zelo que paro por aqui. É por que para lá desta linha fica o extremo da tensão que rompe a corda que me prende a mim mesma. E a tensão dói cada vez mais ou a corda fica cada vez mais fraca.
•••

Comments

Pedro da Luz said…
Muito bom. Arrisco, sem querer bisbilhotar mais informações do autor do texto, que se trata de um mineiro, pois nada mais forte que a presença do mar nessas almas...
Paulo said…
Na mosca. Nunca tinha pensado por esse lado. Realmente a capacidade de reviver esse contato com mar assim é um traço bem mineiro.
É mineiríssima, ela.

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