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Diário da Babilônia: olhando para trás para entender o que vem pela frente

KKK na luta contra os católicos degenerados
Reza a lenda que os Estados Unidos são um país aberto aos refugiados políticos [principalmente aqueles vindos dos países socialistas durante a Guerra Fria]. Reza a lenda que os Estados Unidos são também um país que precisa precaver-se contra os imigrantes "oportunistas", motivados apenas pelos seus próprios ganhos financeiros. Há desconfiança também quanto aos refugiados políticos, seja como "falsos exilados" [imigrantes oportunistas disfarçados de exilados] ou seja como potenciais "agentes estrangeiros infiltrados" - comunistas infiltrados durante a Guerra Fria, terroristas islâmicos infiltrados hoje. Mas reza a lenda de um país aberto, concebido fora das linhas étnicas/raciais/religiosas específicas que servem de base para a identidade dos europeus.

[Em todos os países, suponho, "a lenda reza". Nos países que eu conheço é assim. Cada país é claro reza sua própria lenda, e todos rezam sempre piamente. Deve ser um dos motivos principais da desconfiança contra os estrangeiros - vindos de outras partes, ignorantes das sutilezas da pantomima que cada cultura apresenta de si mesma, os estrangeiros acabam estragando a festa, destoando do coro até mesmo sem querer.]

Bastam alguns exemplos para que se revele uma situação bem mais complicada. Vamos a eles, em português, a salvo, portanto.

A categoria "illegal alien" data de 1924, mesmo ano da criação da "Border Patrol" que militarizou a fronteira com o México quase cem anos dessa conversa ridícula sobre muros. Essas duas criações estão em sintonia com um longo processo de desmexicanização daquela imensa metade do território mexicano que os Estados Unidos roubou depois de uma guerra que acabou em 1848. Esse processo é feito, clara e simplesmente, com bases racistas. As ondas de deportações em massa desde aquela época então seguem um padrão, misturando argumentos estritamente legais sobre a necessidade de registro e definição clara do status dos habitantes alienígenas ilegais em questão com a perseguição a líderes políticos e sindicais desses grupos de indesejáveis - radicais ou subversivos.  Retoricamente, cria-se na opinião pública um clima favorável para esse tipo de política repressiva com a associação da "ilegalidade" desses imigrantes [definida por uma política de cotas claramente discriminatória e racista] com uma suposta propensão à "criminalidade" desses mesmos grupos, sejam eles latino americanos, asiáticos ou muçulmanos.

Não faz tanto tempo assim, em 1940, Eleanor Roosevelt se batia com a administração do próprio marido [o presidente democrata Franklin Roosevelt] que ainda se recusava a permitir a entrada livre de refugiados judeus da Europa nos Estados Unidos. O motivo da recusa, clara e simplesmente: anti-semitismo, o mesmo anti-semitismo que tinha transformado o processo de seleção das universidades americanas de elite no misterioso labirinto de "critérios" que vigora até hoje [ver um resumo da manguaça aqui]. O discurso anti-semita é particularmente perverso ao associar os judeus ora com banqueiros e financistas, ora com intelectuais e artistas decadentes, ora com radicais subversivos.

Ainda naquele mesmo ano de 1940, a combativa primeira-dama Roosevelt comprava outra briga ao pedir pelo fim do regime de segregação racial nas forças armadas dos Estados Unidos. Mais uma vez o motivo daquela segregação é, clara e simplesmente, racista. No nível do discurso o racismo americano é o oposto do racismo brasileiro: fervorosamente idealista ao invés de hipocritamente pragmático. Reza a lenda ainda em muitos círculos brasileiros que somos uma "democracia racial".

Ainda nos anos 40, quando a guerra ao Japão é declarada, imigrantes japoneses e descendentes de japoneses cidadãos do país padeceram em campos de concentração nos Estados Unidos. Os critérios, mais uma vez, eram puramente raciais. O exemplo traz um ponto importante: nos momentos mais agudos as linhas entre cidadãos e não-cidadãos e entre imigrantes legais e ilegais se confundem.

Em 1954 o governo do republicano Eisenhower [com a cooperação do governo mexicano de Adolfo Ruiz Cortines, com a Revolução Mexicana já num estado de completo congelamento] iniciou a chamada "Operação Costas Molhadas" [Operation Wetback, nome pejorativo dado aos que supostamente tiveram que atravessar o Rio Grande] e deportou só naquele ano 1.078.168 pessoas. Os deportados, surpreendidos em batidas policiais, não tiveram direito sequer de juntar suas coisas ou de avisar seus familiares e foram "depositados" longe da fronteira, por exemplo, em Veracruz, no Golfo do México. Os estudiosos hoje apontam 54 como a culminação de anos de recrudescimento das políticas de "desmexicanização". Já em 1950, por exemplo, um panfleto de denúncia de 26 páginas foi publicado com o seguinte título: "O terror da deportação: Uma arma para calar a América".

O grande conflito [nada frio] do século XXI, marcado pelo espetáculo do 11 de setembro de 2011, não oferece aos imigrantes vindos da Síria, do Afeganistão ou do Iraque facilidade para provar seu status de refugiados. A razão obviamente racial se esconde num discurso de preconceito religioso - todo o muçulmano hoje é um terrorista em potencial, assim como todo o judeu era um subversivo em potencial. Os imigrantes latino-americanos, também raças "indesejáveis", eles têm que enfrentar partir de 2005 a nova força policial chamada ICE [Immigration and Customs Enforcement] que intensifica batidas por todo o país, ao ponto de Obama começar a ser chamado ironicamente de "Deporter in Chief" ao invés de "Commander in Chief" - 2.5 milhões de deportados em seis anos.

Nos dois momentos [guerra fria e guerra contra o terrorismo islâmico] as deportações muitas vezes coincidiam com repressão a tentativas de organização do tipo sindical em busca de melhores condições de trabalho para esses imigrantes. Mais além, nas duas oportunidades a preocupação com a "composição racial" do país e com a supremacia dos brancos era central.

Uma diferença notável: com o tempo o conceito de "branquidão" nos Estados Unidos foi absorvendo [pelo menos nos grandes centros urbanos] grupos antes considerados "inaceitáveis": os católicos europeus [poloneses, italianos e irlandeses], os asiáticos e mesmo os judeus. Assim o racismo da KKK, radicalmente anglocêntrico e protestante, foi sendo substituído por um racismo renovado, capaz de absorver alguns grupos antes indesejáveis mas ainda mantendo o horror aos grupos que "escureceriam" o país: latino-americanos, árabes, indígenas e negros. No campo religioso saem de cena o anti-semitismo e o anti-catolicismo da KKK e entra o anti-islamismo.

A República no Brasil foi proclamada em nome de um projeto de embranquencimento que era visto pelas elites como o diferencial fundamental entre o desenvolvimento vertiginoso nos Estados Unidos e a letargia brasileira. Basta comparar a recepção dada aos imigrantes italianos, espanhóis e portugueses no começo do século XX com a recepção dada aos imigrantes haitianos e africanos no começo do século XXI. Uma vida européia vale muito mais que uma vida asiática.

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