Em “Academias de Sião”, Machado de Assis
nos oferece uma pergunta como a serpente oferece o fruto a Adão e Eva no paraíso,
com aquela ambivalência característica dos narradores de Machado, essas vozes irônicas não levam nem o gesto nem
a pergunta completamente a sério, sem que isso signifique exatamente uma farsa. É a pergunta que ocupa as quatro academias de
Sião (que o narrador admite logo na abertura do conto serem puramente imaginárias):
“por que é que há homens femininos e mulheres masculinas?” No conto não se
trata de uma pergunta puramente especulativa, feita no abstrato. A motivação
por trás da pergunta é “a índole do jovem rei”:
Kalafangko
era virtualmente uma dama. Tudo nele respirava a mais esquisita feminilidade:
tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e obedientes e um cordial
horror às armas. Os guerreiros siameses gemiam, mas a nação vivia alegre, tudo
eram danças, comédias e cantigas, à maneira do rei que não cuidava de outra
coisa.
Como não pensar no Sião governado por
Kalafangko como uma versão da utopia da Festa do Divino? Kalafangko é como
aquele messias que volta à terra para reinar não como velho barbudo, não como
carpinteiro nem como pomba mágica, mas como um simples menino, presidindo uma
infinita mesa farta onde a tristeza e a fome ficam abolidas para sempre.
Os guerreiros sofrem e os acadêmicos se
preocupam. Uma academia propõe que as almas são ou femininas ou masculinas e
que às vezes pode se dar uma “anomalia”: “uma questão de corpos errados”. Não
por acaso essa é a tese que prevalece, não tanto pelos seus argumentos, mas
pela força mais bruta: seu presidente termina usando um colar com as orelhas
arrancadas dos cadáveres dos acadêmicos das outras três. Terror e condenação vêm
de todas as partes exceto da outra anomalia do Sião, a concubina favorita do
rei, Kinnara, “mulher máscula, - um búfalo com penas de cisne”.
A opinião de Kalafangko é singular e uma
lição para quem se sente instado a declarar seu apoio ou repúdio inequívoco a
tudo o que acontece na face da terra e aparece no circo das redes sociais: A tese
da alma sexual e a tese da alma neutra são para o rei equivalentes: a alma é e
não é sexual e tanto faz, pois ambas teses são absurdas para Kalafangko, que só
crê na boca [deliciosa fonte de sabedoria] e nos olhos [sol e luz do universo] da pessoa por ele amada. Em nome desse amor que é a única coisa que
importa, Kalafangko assente ao pedido de Kinnara e decreta a alma sexual como doutrina legítima
e ortodoxa, absolvendo assim os acadêmicos sanguinários dos seus crimes. Mas
faz questão de deixar claro que ele simplesmente nega a importância de qualquer
uma das duas teses opostas.
Qual a solução que Kinnara encontra para almas sexuais
desencontradas dos seus corpos? Ora, trocar de corpo, não por uma pedestre sequência
de cirurgias plásticas [Machado de Assis não está escrevendo ficção científica],
mas pela invocação de fórmula mágica. Note que Kinnara não deseja trocar seu
corpo pelo do marido por se sentir mais a vontade numa anatomia masculina, mas
porque ela quer exercer um poder político que só estára disponível a ela se ela
não habitar mais um corpo feminino. Kalafangko aceita
a troca “por um semestre”. O desfecho dessa parte do conto é simplesmente
sensacional:
- Realmente, disse Kalafangko, isto de olhar para mim
mesmo e dar-me majestade é esquisito. Vossa Majestade não sente a mesma coisa?
Um e
outro estavam bem, como pessoas que acham finalmente uma casa adequada.
Kalafangko espreguiçava-se todo nas curvas femininas de Kinnara. Esta
inteiriçava-se no tronco rijo de Kalafangko. Sião tinha, finalmente, um rei.
Machado de Assis escapa da armadilha que
Freud antecipa apenas porque não leva muito à sério essas discussões sobre identidades
essenciais. As almas têm gênero? Os gêneros têm corpos? O único fato social
incontestável no conto é que vivemos nele num mundo que parece com o nosso
porque só concebe o poder como o governo dos búfalos e das academias sanguinárias.
Em menos de seis meses o búfalo no poder revitaliza estado e igreja ao mandar
enforcar sonegadores de impostos e queimar hereges e finalmente declara uma
guerra “com um pretexto mais ou menos diplomático”.
O conto é ainda mais complexo e reserva
novas complicações que fazem um contraste gritante com o mundo de banalidades que se produzem sobre gênero e sexualidade. Sinto dizer que seguimos até hoje governados por búfalos,
estejam eles em corpos masculinos ou femininos. E até suspeito que celebraremos
um dia como uma grande evolução a chegada ao poder de um búfalo transgênero, que
há de ser tão búfalo quanto todos os outros búfalos ou quem sabe até mais búfalo ainda, pelo
desejo de assegurar aos donos de mundo que continuamos abertos para os negócios
e fechados para a vida.
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