--> No final dos anos 70 um livro com entrevistas com várias pessoas sobre a questão das patrulhas ideológicas no Brasil terminava com uma pergunta sobre as perspectivas para a implantação do socialismo no Brasil. Hélio Oiticica deu uma resposta curta que me volta à memória de tempos em tempos feito uma assombração:
“Socialismo no Brasil? Eu estou achando quase impossível, o Brasil é um país bem fascista…”
Essa declaração destoava completamente do tom geral da época, quando uma entidade altamente idealizada chamada "povo" mobilizava as esperanças de muita gente de construir um Brasil novo logo que nos livrássemos da estupidez dos milicos. O problema é que os milicos eram só a ponta visível de um imenso iceberg de estupidez que mostraria suas garras na primeira eleição livre para presidente depois da ditadura, com a vitória de um tal de Fernando Collor.
Mas é preciso ter um pouco de cuidado com uma espécie de reverso da idealização do povo e do Brasil como vítima e como repositório de bondade, bom senso e bons sentimentos. Esse reverso da moeda ufanista se revela cada vez que alguém perde uma eleição. Invariavelmente aparece um monte de gente inconformada lamentando a estupidez, a ingenuidade, a idiotice dos eleitores que preferiram alguma coisa que eles não queriam de jeito nenhum. A culpa é do povo; o povo é muito burro; o povo merece sofrer, ser explorado, aviltado, violentado etc. O recalque não tem endereço político fixo: o derrotado enfurecido pode ser de esquerda ou reacionário.
Para fugir dessa moeda que num lado ufana e no outro esculhamba, podemos começar lembrando sempre que a entidade fantasmal povo ou, na formulação do Oiticica, Brasil é feito também de Hélio Oiticica, de mim e de você leitor gente boa.
Suspeito que a sordidez [assim como a grandeza] é uma possibilidade dentro de qualquer ser humano e que um dado ambiente e momento histórico apenas favorecem que essa sordidez se realize em atos e gestos concretos, botando fogo em índios no ponto de ônibus ou jogando bombas na cara das pessoas. Não creio que os alemães sejam piores [ou melhores] que os brasileiros. O nazismo é que favoreceu a proliferação da sordidez na Alemanha. E o nazismo não foi culpa de todos os alemães e não triunfou só por causa do empenho e esperteza de Hitler e companhia.
Então nós, que não queremos nada com sordidez, fascismo e crueldades variadas, temos que identificar e combater vigorosamente esses fantasmas promotores dos nossos piores instintos. Com urgência. É preciso fazer como o bombeiro que trabalhava no incêndio do edifício Paissandu e quando perguntado sobre o caráter ilegal dos moradores/invasores respondeu que estava para salvar vidas. Responder e contestar o nosso fascismo reafirmando a vida, a alegria e a liberdade de cada um fazer o que quiser com seu corpo e a sua vida toda a vez que um desses urubus do fascismo vierem gralhar no seu quintal.
É pouco mas é o que temos agora.
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