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Juan Rulfo: El día del derrumbe


“El día del derrumbe” (Toda la obra, 140-149) é um conto de acento nitidamente cômico e quase farsesco. Publicado pela primeira vez no influente caderno cultural México en la Cultura, do jornal Novedades em 1955, “El día del derrumbe” só foi acrescentado ao volume de contos El Llano en llamas na sua nona edição em 1970.
“El día del derrumbe” traz dois narradores/contadores de história: um deles, cujo nome desconhecemos, conduz quase toda a narrativa, mas constantemente elicita explicitamente uma confirmação ou correção do outro narrador, Melitón, dizendo, por exemplo, “Oye, Melitón, (…) ¿Tú no te acuerdas?” (140) ou “¿O no es así, Melitón?” (141). A narrativa dividida assim entre os dois ganha sentido agudo de performance, com apelos frequentes a uma audiência silenciosa com coisas como: “pero espérense” (140), “Todos ustedes saben” (141), ou “bueno, como les estaba diciendo” (141). Aqui Melitón é um ouvinte participante, convocado insistentemente pelo narrador principal porque “eres muy bueno para eso de la memoria, Melitón, no cabe duda” (142) e porque era “presidente municipal” Tuzcacuesco quando da visita do governador. Melitón corrige o narrador às vezes, fornece detalhes e toma as rédeas da narrativa ao reproduzir verbatim o longo discurso do governador que “lo he repetido tantas veces que hasta resulta enfadoso” (142).  
Melitón e o narrador principal recontam juntos o dia em que o tal governador do estado faz uma visita extraordinária fora do calendário eleitoral por causa um terremoto devastador que atinge Tuzcacuexco. Houve de fato um violento terremoto em 1932 que deixou pelos menos 6.000 famílias desabrigadas. O governor era Sebastián Allende (1893-1947), general ativo da revolução Mexicana e “famigerado” pelo envolvimento num tiroteio na câmara dos deputados que resultou na morte de um rival político e pelos vistosos sapatos negros que renderam a ele e a seus acólitos o apelido tenebroso de “los muerteros” (os agentes mortuários). A devastação causada pelo desastre natural é exarcebada pela visita do governador, que causa uma custosa interrupção no esforço de reconstrução com a realização de um farto banquete ao governador e sua imensa entourage, uma origia de excessos grotescos que rapidamente se deteriora em tiroteio seguido de briga de rua com a morte de pelo menos mais uma pessoa, esse o “derrumbe” a que se refere o título.
O desastre natural pode ser comparado metaforicamente ao impacto causado por bruscas mudanças econômicas, políticas e sociais na existência já precária de gente pobre vivendo às margens do capitalismo rural. “El día del derrumbe” vai além, estabelecendo uma conexão mais explícita entre os desastres de ordem natural e os desastres de natureza social. O estado aparece como um interventor frequentemente brutal e parcial que frustra qualquer expectativa de mudança positiva ao reduzir o discurso de reformas a um vazio e pela quase completa ausência, abandonando a gente que têm que lidar com violência e arbitrariedades entre errupções calamitosas de desastres naturais e humanos.
A presença do governador, descrita com ironia sarcástica pelos dois narradores, expõe claramente o absurdo de uma presença que por si parece magicamente capaz de consertar qualquer problema e que na verdade não faz nada. Uma comunidade em seríssimas dificuldades oferece em sacrifício quatro mil pesos ao governador e sua entourage, enquanto estes lhes oferecem nada além de gestos vazios de falsa compaixão. Ao invés de indignação com esse absurdo, os narradores do conto de Rulfo nos oferecem um sarcasmo em forma de falsa ingenuidade que lembra o monólogo final de Justino Nava em “¡Diles que no me maten!” ou a voz zombeteira de Ratliff em “A Bear Hunt”:

            "(…) me lembro que estávamos ainda escorando as paredes, chegou o governador; vinha ver que ajuda podia dar com sua presença. Vocês todos sabem que sempre que basta que o governador se apresente, é só o pessoal vê-lo, para que tudo se arranje. A questão é fazer com que ele pelo menos venha ver o que está acontecendo, e não fique por lá, metido na sua casa, só dando ordens. Ele vindo tudo se arranja, e o pessoal, mesmo que a casa tenha desmoronado em cima da cabeça, fica todo contente só de tê-lo encontrado."*

Esse governador totem do poder do estado é familiar: cínico e oportunista, aqui alvo de uma sátira irônica que se esconde em um discurso ostensivamente ingênuo: 

"… ficamos muito contentes: o pessoal estava que arrebentava o pescoço de tanto se esticar para poder ver o governador e fazendo comentários sobre como ele tinha comido o peru e que havia até chupado os ossos, y de como ele era rápido para traçar uma tortilha atrás da outra, passando nelas o molho de abacate; repararam em tudo. E ele todo tranquilo, todo sério, limpando as mãos nas meias para não sujar o guardanapo que só serviu mesmo para ele ajeitar os bigodes de vez em quando."*

A ambivalência reticente que não impede a crítica aguda e sarcástica. Pode parecer covardia, mas trata-se de estratégia de sobrevivência transformada em característica cultural profunda, traço que carregamos, brasileiros e mexicanos, desde que invasores europeus começaram a chegar no século XVI.



* No original, “… me acuerdo que estábamos todavía apuntalando paredes, llegó el gobernador; venía a ver que ayuda podía prestar con su presencia. Todos ustedes saben que nomás con que se presente el gobernador, con tal que la gente lo mire, todo se queda arreglado. La cuestión está en que al menos venga a ver lo que sucede, y no que se esté allá metido en su casa, no más dando órdenes. En viniendo él, todo se arregla, y la gente, aunque se le haya caído la casa encima, queda muy contenta de haberlo conocido.” (141)

** No original, “… estuvimos muy contentos: la gente estaba que se reventaba el pescuezo de tanto estirarlo para poder ver el gobernador y haciendo comentarios de cómo se había comido el gualojote y de que si había chupado los huesos, y de cómo era de rápido para levantar una tortilla tras otra rociándolas con salsa de guacamole; en todo se fijaron. Y él tranquilo, tan serio, limpiándose las manos en los calcetines para no ensuciar la servilleta, que sólo le servió para espolvorearse de vez en cuando en los bigotes.” (141-142)

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