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Fantasmas do Rio de Janeiro em oito momentos

El espiñazo del diablo, filme de Guillermo del Toro
1. Assim começa o filme El espiñazo del diablo de Guillermo del Toro:

"¿Qué es un fantasma?

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Un evento terrible condenado a repetirse una y otra vez.
Un instante de dolor, quizás.
Algo muerto que parece por un momento vivo aún.
Un sentimiento suspendido en el tiempo,
como una fotografía borrosa,
como un insecto atrapado en ámbar."


Guillermo del ToroAntonio Trashorras y David Muñoz

2. A primeira praça pública da Cidade do Rio de Janeiro foi construída em 1843, aproveitando a estrutura de pedra e cal do cais do Valongo, único cais de pedra da cidade construído por decreto da Coroa Portuguesa, pedras do Morro da Conceição. O cais estava desativado desde 1831, mas por ali passaram centenas de milhares de almas sequestradas na África e trazidas para uma vida miserável no Brasil.

3. Assumiu o projeto da praça um orgulhoso membro do Conselho de Sua Majestade Real, Fidalgo Cavalheiro da Sua Real Casa, Comendador da Ordem de Cristo, Desembargador do Paço e Intendente Geral de Polícia da Corte e Estado do Brasil. Seu nome: Paulo Fernandes Vianna.

4. A família Fernandes Viana contava com traficantes de escravos poderosos e fazendeiros de Campos até Paraty. Ela preserva e estende seu poder com aqueles clássicos casamentos entre primos. A rede da família constitui parte importante da elite do Partido Conservador (o Partido da Ordem) durante a monarquia. Paulo Fernandes Vianna era, por exemplo, sogro de um certo Duque de Caxias.

5. Um outro Pedro Fernandes Viana, por exemplo, participou do projeto que plantou no topo do Corcovado o gigantesco Cristo que dá as costas ao subúrbio e abre os braços para a Zona Sul do Rio de Janeiro.

6. Um das penitenciárias mais notórias da Ditadura de 1964, parte do Complexo Frei Caneca (demolido neste século), chamava-se: Penitenciária Fernandes Vianna.

Correio da Manhã, Junho de 1964


7. No Morro da Conceição, de cujas Pedreiras saíram as pedras do Valongo, nasceu Machado de Assis em 1839. Ele escolheu para protagonista e narrador de um dos seus melhores contos o nome de Procópio Valongo. Homem educado, mas sem cabedal, o Valongo de Machado de Assis acaba indo trabalhar como enfermeiro de um velho fazendeiro no interior. O primeiro diálogo entre os dois é assim:


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"    Achei-o na varanda da casa estirado numa cadeira, bufando muito. Não me recebeu mal. Começou por não dizer nada; pôs em mim dous olhos de gato que observa; depois, uma espécie de riso maligno alumiou-lhe as feições, que eram duras. Afinal, disse-me que nenhum dos enfermeiros que tivera prestava para nada, dormiam muito, eram respondões e andavam ao faro das escravas; dous eram até gatunos!
    — Você é gatuno?
    — Não, senhor.
    Em seguida, perguntou-me pelo nome: disse-lho e ele fez um gesto de espanto. Colombo? Não, senhor: Procópio José Gomes Valongo. Valongo? Achou que não era nome de gente, e propôs chamar-me tão-somente Procópio, ao que respondi que estaria pelo que fosse de seu agrado."

O Procópio de nome fantasmagórico sabia das coisas e termina o conto virando o Evangelho de cabeça para baixo:


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"  Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos valem alguma coisa, pague-me também com um túmulo de mármore, ao qual dará por epitáfio esta emenda que faço aqui ao divino sermão da montanha: 'Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados'."


8. Andamos pelo Rio de Janeiro resvalando em fantasmas. São fantasmas de africanos sem nome, de Procópios que avançam, de Valongos que olham para trás e de Machados rachando a lenha da compaixão e da ironia. São fantasmas de duros Fernandes Vianas demolindo e construindo com as pedras do morro da Conceição, cavando e aterrando com o Morro do Castelo e plantando um Cristo que parece abrir os braços em duro desespero e dar as costas a tanta gente. Fantasmas de pedreiras,  trapiches, portos, cemitérios e presídios. Fantasmas de golpes de estado e de caças às bruxas. Fantasmas de Duques de Caxias e Marechais de Ferro. Fantasmas.

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