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Considerações para o fim do ano

1. Primeira pergunta do ano: de onde veio tanta ignorância? Brota do chão? Cai das nuvens? É efeito colateral de uma indústria da burrice? Das redes sociais? Dos telefones tirando fotinhas de tudo o tempo todo? São fantasmas de séculos de brutalidade colonial? Alguém está disposto a fuçar essa ferida? Fuçar a ferida sem cair em narcisismo, sem encontrar nos outros uma ignorância que é minha também. Ignorar é um dom humano universal; o que espanta é esse orgulho da própria ignorância. Eu, formado em país católico, sinto-me timidamente culpado pelas minhas ignorâncias. Estudar mais para ignorar menos.

2. Uma parte significativa da população aprende em menos de vinte anos a aceitar publicamente a existência dos homossexuais e a sua visibilidade no mundo. Para eles é questão de dar fim à ignorância sobre o assunto, porque o homossexualismo sempre existiu e sempre existiu debaixo dos narizes e das barbas do resto da população. Mas outra parte significativa da população se encolhe numa fobia virulenta e elege uma penca de imbecis que prometem lutar pela "família brasileira". Com medo de que os amados filhos "virem gays", eles elegem como líderes uma manada de pastores, delegados, militares, milicianos, iutubers, músicos, humoristas e celebridades: um zoólogico completo de Templários Bizarros lutando contra o Dragão do Gayzismo. Seria cômico se o medo e a violência que essas coisas provocam não fosse tão palpável e concreto. Os covardes se juntaram e criaram o grande Partido da Infelicidade Brasileira - e o PIB não para de crescer.  

3. Os fatos continuam os mesmos: a imensa maioria da violência sexual contra menores acontece em casa, dentro da família. Que tipo de família seria essa? Qualquer uma? Seja qual for a resposta, sabemos onde o abuso sexual encontra acolhida silenciosa: na tradicional, patriarcal família brasileira. De onde vem tanto apego a uma instituição tão podre desde os tempos da colônia? Papai vai dar um murro na mesa e colocar tudo em ordem?

4. Um número significativo da população parece aceitar que para que ela sobreviva, há que reinventar a família em bases diferentes. Mas outra parte significativa, contra todos os fatos, se apega ao patriarcado como se ele fosse capaz de nos salvar. Salvar-nos de quê? Nesse ponto estamos todos unidos. Parece que todos nós gostaríamos de ser salvos do maldito futuro que se apresenta no horizonte. Todos, fascistas ou não, coincidem em sentir-se amedrontados e inseguros com um futuro na miséria: sem emprego regular, sem trabalho humano, sem dinheito, envenenados, sem família, sem privacidade.

5. Se todos têm medo, há aqueles que defendem nas esquinas, nos rádios, nos programas vespertinos, nos bares, nas mesas de domingo, no cafezinho no trabalho que é a solução é matar, sumariamente. Essa é a única solução: matar, espancar, torturar, explodir com bombas, violar, exterminar. Seriam ignorantes ou simplesmente estúpidos os propagadores desse veneno? Seriam eles simplesmente expressão de um ódio que circula desde sempre no Brasil?

6. São muitos os que pensam assim, mas não são todos nós. Eu não sou assim. Mas confesso que muitas vezes ouvi essas barbaridades e me calei. Fiquei calado por preguiça, por covardia, por conveniência, por acomodamento. Não é possível continuar calado. De novo a culpa católica? Que seja. Contando que não seja a velha hipocrisia católica, que seja. Que Geni seja capaz de deixar que a cidade se destrua toda dessa vez.

7. E também vivi o suficiente para saber que outras coisas circulam pelo Brasil desde sempre também. Se há muito ódio, há muita afetividade e muito sorriso. Quantas vezes da precariedade eu não vi nascer arte? Circula ainda no Brasil muita coisa além do ódio. Que o próximo ano nos traga um milagre? Minha herança católica não chega a tanto.

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