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Diário da Babilônia: Crises agudas e dores crônicas

A crise aguda do vírus corona chegando e os problemas estruturais crônicos que permanecem desde algum tempo fazem o Estados Unidos passarem por um momento especialmente delicado.

Antes mesmo da chegada do Vírus Corona, expectativa de vida já havia caído por 3 anos consecutivos nos EUA. A última vez que isso tinha acontecido foi entre 1915 e 1918 por causa da Primeira Guerra Mundial em conjunto com a Gripe Espanhola. A causa dessas quedas na expectativa de vida por aqui foram 600 mil mortes “extra” (não previstas pelos demógrafos) de adultos brancos entre 45 e 54 anos de idade. As causas principais são suicídio, overdose e doenças do fígado causadas por abuso de álcool e os mortos na sua imensa maioria são brancos sem diploma universitário. As mortes causadas pela crise dos opioides chegou a um equilíbrio no ano passado após anos consecutivos de crescimento. Mas as mortes por suicídio e por problemas derivados do alcoolismo continuam crescendo.

A questão é: por que tantas mortes?

Antes de tentar qualquer resposta, é preciso acrescentar a essas mortes outro fator de sofrimento: as dores crônicas. 100 milhões de pessoas nos Estados Unidos sofrem de dores crônicas. Durante alguns anos os médicos receitaram Oxycodone e outros opióides como se eles fossem aspirinas, sem se dar conta que esses remédios eram altamente viciantes. Mesmo depois que o uso legal foi restringido, o resultado foi que se estima que mais ou menos 1 milhão de pessoas usam heroína diariamente nos EUA. Muitos outros usam substâncias como fentanyl, inicialmente para lidar com a dor e depois para lidar com o vício com alguma dessas substâncias. Mais uma vez algo chama a atenção para um grupo específico: as pessoas na faixa dos 50 anos têm taxas bem maiores de dor crônica que as pessoas na faixa dos 70 ou 80 anos. Que dores tão persistentes são essas?

No final dos anos 60, apenas 5% dos homens entre 25 e 45 anos não trabalhava. Em 2010, 20% desses homens não trabalhava. A contagem oficial do desemprego tem maneiras para mim bizarras de “apagar” aqueles que estão cronicamente desempregados: se alguém “desiste” de procurar emprego, essa pessoa desaparece das estatísticas como desempregado. Assim, os anúncios de pleno emprego de uma supostamente exuberante economia escondem debaixo do tapete que um em cada cinco homens entre 25 e 45 anos estão cronicamente desempregados. Numa análise por região, percebe-se que quanto menos gente trabalha nessa faixa etária e de gênero, maior o número de mortes por suicídio, overdose e problemas relacionados ao alcoolismo.

Desemprego crônico, dores (psíquicas e/ou físicas) crônicas, epidemias de desespero. O Corona vem chegando para aplicar mais pressão num tecido já bastante esgarçado. E pior, vem chegando num país onde uma parte importante da população vive uma vida ainda extraordinariamente afluente e ignora o desespero dessa massa irritada. 

Essa massa irritada, por exemplo, votou em massa (quando saiu de casa para votar) em Donald Trump em 2016 e deu a ele vitórias fundamentais em estados onde Obama havia ganhado antes. A reação do resto do país - claro entre os que tinham plena convicção, como eu, de que Trump era muitíssimo pior que Hillary Clinton - foi de indignação. Choveram artigos e ensaios em que se usaram de todos os estereótipos possíveis para darem explicação para esse comportamento "incompreensível" dos brancos da classe trabalhadora nos EUA. 

Essa incompreensão continua tão aguda que, quatro anos depois, o candidato praticamente já escolhido pela oposição democrata para as eleições fala em "fazer as coisas voltarem ao normal", sem perceber que esse "normal" significa um inferno para muitas pessoas. Elas votaram em Trump e talvez votariam em Sanders porque não querem que as coisas continuem como estão. Em vista do que expus aqui, não faz um certo sentido? 

Some-se a isso tudo as dores agudas de uma crise de saúde sem precedentes sob a direção de um energúmeno sem precedentes - perto dele imbecis como Ronald Reagan e George W. Bush parecem exemplos de civismo e classe. O que vai acontecer se os caixões começarem a se empilhar como na Itália? Logo veremos.

Comments

André said…
Some-se a isso tudo a inexistência de estrutura de saúde pública nos EUA. O percentual se pessoas por aí que simplesmente não fazem exame nenhum ao longo da vida por causa dos custos é altíssimo.
Pois é, André. Só Walmart e McDonalds empregam (ou melhor sub-empregam) 750 mil americanos sem direito a licença por motivos de saúde. Faltou ao trabalho, salário cortado, integralmente. E nem cheiro de seguro de saúde. Pode ser muito pior do que na Itália.

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