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Sobre "Meditação" Gonçalves Dias: como morre uma cultura/nação/país

Em "Meditação" Gonçalves coloca em diálogo um jovem e um ancião, que discutem a partir de perspectivas diferentes questões relativas ao passado, presente e futuro do Brasil. Num dos momentos altos do texto o Ancião nos joga na cara [na cara de todos os brasileiros] o seguinte:

"A nacionalidade, que é dela? O característico de um povo, que é dele?

Não sabeis vós que a planta exótica perde o mais excelente de seu aroma, e que a roseira dos Alpes produz espinhos, plantada em vales?

Dir-vos-ei que as nações se assemelham os indivíduos.

E se milhões de indivíduos morreram sem nome; também foram povos cujos nomes se deliram dos anais da humanidade.

E como existiram homens sem gênio; povos também existirão sem ele.

Porque eles dirão em sua indolência;

– Por que plantarei um pomar se não hei de provar seus frutos?

E o mesmo dirão vossos filhos, e ainda o mesmo os filhos de vossos filhos; e não plantarão o pomar.

E dirão mais no seu egoísmo: – Se eu incendiar esta devesa*, ainda me sobra para me asilar na calma do verão.
 *devesa é o mesmo que mata

E o mesmo dirão vossos filhos, e ainda o mesmo os filhos de vossos filhos; e incendiarão as suas devesas.

E direis mais: “Não construirei uma ponte sobre este rio, porque uma árvore colossal caiu sobre ele à flor da água; e que me importa que o seu leito se encha de areias, e que não haja comunicação entre os homens que habitam a sua nascença e a sua embocadura?”

E o mesmo dirão vossos filhos, e ainda o mesmo os filhos de vossos filhos; e o tronco permanecerá à flor da água, e o seu leito se encherá de areias, e não haverá comunicação entre os homens que habitam a sua nascença e os que moram na sua embocadura." [48]

O recado é claro: sem cultivo, sem cuidado com o futuro cultivado de geração em geração, não temos caráter [gênio] e nos condenamos ao puro e simples desaparecimento sem deixar traços no futuro. É o que nos apresenta a situação presente: o meio-ambiente na mão de um agro-boy; os direitos humanos na mão de uma fanática religiosa; a diplomacia na mão de um fanático anticomunista; a educação na mão de um obscurantista; a ciência na mão de um vendedor de travesseiros; a saúde na mão de militares; a polícia na mão da milícia; a economia e a administração pública na mão de alguém odeia os pobres e o governo.  

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