Tupis com Espírito Santo
Sonhos, sonhos. Estou vendo o que você é; o que você foi é passado.
Livro dos mortos, Luciano de Samósata
Toco agora a carne viva
da minha lembrança.
O passado que não passa
mesmo quando cansa.
Era o meio-dia
dos meus quinze anos,
na esquina de Tupis
e Espírito Santo,
a primeira vez
que senti o turbilhão
de imagens e ideias
que naufragou desde então,
tantas vezes repetidas,
minha parca consciência,
meu siso, minha alegria,
meu inquieto coração.
Ali eu era um barquinho
no meio do furacão,
me agarrando aos ferros
de uma razão cercada,
ferida e incapaz
de vestir com senso o caos.
Os meus olhos reviravam
o céu paralítico.
Ignorando tornozelos
e pulsos atados
a um flamboaiã em chamas
e o tronco cravado
de flechas quebradas,
S. Sebastião tocava
o velho tango argentino,
que é hoje bandeira e hino:
Tudo o que eu vivi morreu.
Tudo o que eu perdi é meu.
Meu veneno é meu remédio.
Não espere nada mais.
Era a sexta-feira
dos meus quinze anos
na esquina de Tupis
e Espírito Santo.
Meu amigo me largara
no meio-dia do nada.
Eu apelava em silêncio
a quem pudesse ouvir:
S. José da Boa Morte,
Carpinteiro Operário
e Ibejis de Montezuma,
Sentinelas do Acaiaca,
Me atendam em silêncio,
porque Deus nos empenhou
desde o começo dos tempos
uma só magra palavra
que contém nela o mundo.
Só se escuta essa palavra
no mais absoluto
e puro silêncio:
O hirto silêncio de muro
de pano abafando boca
de pedra esmagando ramos
de caldo grosso e vermelho
que mata o Rio Doce,
que mata o Paraopeba,
que mata o tempo.
Esse é o silêncio de Deus
Cambaleei Tupis abaixo,
ciscando tristezas
nas cardinas e canhanhas
das calçadas portuguesas
e nas cantarias planas
da pedreira Prado Lopes
lambuzadas de asfalto
revolvia minhas mágoas.
Desabalei as escadas
do Parque Municipal,
calado, cosida a mão
ao áspero corrimão.
No Teatro de Emergência
buscava ar em mim mesmo;
sorvia o medo da morte
buscando em mim um faquir
que deslembrasse da dor
pra que o tempo remexesse
os minutos devagar
e desfizesse em mim
esse sorvedouro denso,
esse ar viscoso,
esse estertor pesado,
esse sopro viciado.
Me encontrou ali um velho
articulando miséria –
a velha seca, asmática
fatal, que empenha móveis,
relógios, anéis,
sapatos e paletós
casacos, jaquetas,
até que só reste osso
de um espantalho falaz.
Na mão cacos de um livro
sequestrado dum entulho,
recheado de quimeras
que eu conhecia bem.
Entre preposições mochas
e vírgulas duvidosas,
ele me fez um convite
que meus pares me ensinavam
pedir um soco na cara
ou um borbotão de gritos:
Velho safado mais torpe;
velho rapina perverso.
Nunca fui par dos meus pares
e ali já não dava conta
de tanta força penosa.
Só dei conta de um não
como um cão se encolhe.
Sumiu minha sede viva –
água que a areia engole.
Larguei as minhas muletas –
meus sonhos mais bestas,
meus sofrimentos infantes –
e fui-me embora dali,
cobrindo pé ante pé
os dez quilômetros cinzas
entre o centro e a casa
que já não era mais minha.
No meio do meu caminho
desabou um temporal:
a água cavava a terra
de debaixo dos meus pés.
O carbono podre
da Antônio Carlos
infecciona até hoje
os meus pesadelos
e tudo o que eu sou.
O que eu sou hoje
é esse passado
que não me atravessa.
Minhas saudades são dúbias.
Amo o que detesto
e detesto o que amo
em Belo Horizonte.
As jaboticabas negras
emplastrando as calçadas.
O Arrudas berro d’água
passando o rodo no Centro.
Os rios encloacados,
o minério na garganta.
No verão todos os anos
as catástrofes das águas;
Todo dia o ano inteiro
as catástrofes dos donos
das Minas e das Gerais.
E o meu poema se abre.
Comments
Gostei muito! Essa narrativa pessoal de entendimentos súbitos é o tipo de poesia que mais gosto.