Acabei de ler Temporada de Huracanes da escritora mexicana Fernanda Melchor. Há muito tempo não leio algo tão forte e tão corajoso. Extremos da humanidade explorados com energia vital pulsante e precisão de linguagem. Traduzi um trecho que diz tanto ao Brasil dos cemitérios abarrotados e das valas comuns:
"Vovô acendeu outro cigarro e apenas sacudiu a cabeça mansamente enquanto os empregados do depósito de Villa olhavam para ele com expectativa. Queriam que ele lhes contasse uma das suas histórias, tinha certeza, mas o velho não ia dar aos dois essa satisfação. Pra quê? Pra depois eles andarem por aí dizendo que a porra do Vovô era um doido de pedra? Que eles fossem pra casa do caralho! Sobretudo esse porra desse magrelo, que foi quem começou com a fofocaria de que Vovô falava com os mortos, e isso porque o próprio velho lhe contou de boa fé, pensando que o lesado entenderia, mas não: saiu do cemitério espalhando pra meio mundo que Vovô ouvia vozes e estava gagá, quando Vovô só tinha tentado explicar a precisão de falar com os cadáveres enquanto os enterrava, caralho; porque por experiência própria as coisas saíam melhor desse jeito; porque os mortos sentiam que uma voz se dirigia a eles, que lhes explicava as coisas e se consolavam um pouco e deixavam de sacanear os vivos. Por isso esperou que os maqueiros fossem embora com a ambulância vazia antes de se atrever a dirigir a palavra aos novatos. Tinha que acalmá-los primeiro, fazer com que eles entendessem que já não precisavam ter medo, que o sofrimento da vida já tinha acabado e que não custava muito a escuridão já ia se acabar. O vento atravessava o descampado e balançava as folhas na copa das amendoeiras e fazia redemoinhos de areia entre as sepulturas mais distantes. Já vem a chuva, Vovô contou aos mortos, enquanto contemplava com alívio as nuvens gordas que se apertavam no céu. Bendito seja, já vem a chuva, repetiu, mas vocês não tenham medo, viu? Uma gota gorda caiu em cima da mão que segurava a pá. Vovô aproximou o punho da boca e lambeu a doçura da primeira chuva da estação. Tinha que se apressar, terminar de cobrir os corpos, primeiro com uma camada de cal e logo com outra de areia, antes que caísse o aguaceiro, e logo colocar a tela de galinheiro em cima da vala, e as pedras por cima da tela, pra que os vira-latas não viessem desenterrar os corpos à noite. Mas vocês fiquem tranquilos, continuou a falar, num murmurar que era só um pouquinho mais que um ronronar. Vocês não tenham medo nem se desesperem, fiquem aí bem tranquilinhos. O céu se acendeu com a luz de um raio, e um estrondo abafado sacudiu a terra. A água não pode fazer nada com vocês agora e o escuro não dura pra sempre. Já viram? A luz brilhando longe? Aquela luzinha que parece uma estrela? É para lá que vocês têm que ir, explicou; para lá é que está a saída desse buraco."
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