Era uma vez
Margaret Atwood
- Era uma vez uma garota pobre, linda e muito boazinha, que vivia com sua madrasta malvada em uma casa na floresta.
- Floresta? Floresta é um negócio passé, entende? Eu já estou cheia desse negócio de vida selvagem. Não é uma imagem adequada para a nossa sociedade, hoje em dia. Vamos de urbanidade, para variar.
- Era uma vez uma garota pobre, linda e muito boazinha, que vivia com sua madrasta malvada em uma casa na cidade.
- Agora melhorou. Mas eu tenho que questionar seriamente essa termo, pobre.
- Mas ela era pobre!
- Pobreza é uma coisa relativa. Ela vivia numa casa, não é?
- É.
- Então, em termos socioeconômicos, ela não era pobre.
- Mas o dinheiro não era dela! Justamente a questão da história é que a madrasta malvada a obrigava a vestir roupas velhas e a dormir ao pé da lareira –
- Ahá! Eles tinham uma lareira! Com a pobreza, deixa eu te dizer, não tem lareira. Vamos ali na periferia, vamos subir a favela, vamos descer ali embaixo do viaduto, onde as pessoas dormem em caixotes de papelão à noite e eu te mostro o que é a pobreza!
- Era uma vez uma garota da classe média, linda e muito boazinha –
- Pode parar aí. Eu acho que a gente podia cortar esse bela, você não acha? As mulheres de hoje em dia já têm que lidar com padrões de beleza intimidadores demais do jeito que as coisas estão, com todas essas peruas nas propagandas. Será que você não podia fazê-la mais, bem, mais do tipo médio?
- Era uma vez uma garota que era um pouquinho acima do peso e meio dentuça, que –
- Eu não acho que seja legal ficar fazendo graça com a aparência das pessoas. Além do mais, você está incentivando a anorexia.
- Eu não estava fazendo graça! Eu estava só descrevendo –
- Deixe as descrições prá lá. Descrições são opressoras. Mas você pode dizer de que raça ela era.
- Que raça?
- Você sabe, negra, branca, indígena, mulata, asiática. Essas são as escolhas. E eu já vou lhe dizendo de uma vez que eu já estou cheia de branco. É cultura dominante para cá, cultura dominante para lá –
- Eu não sei que raça.
- Bom, provavelmente seria a sua raça, não?
- Mas isso não tem nada que ver comigo! É sobre essa garota que –
- Tudo é sempre sobre você.
- Eu estou achando que você não quer ouvir história nenhuma.
- Tá bom, prossiga. Você podia fazê-la de uma minoria. Isso ajudaria.
- Era uma vez uma garota de descendência indeterminada, tão comum quanto boazinha, que vivia com sua madrasta malvada –
- Outra coisa. Boazinha e malvada. Você não acha que nós devíamos transcender esses epítetos moralistas, preconceituosos e puritanos? O que eu quero dizer é que uma boa parte disso tudo é uma questão de condicionamento, não é mesmo?
- Era uma vez uma garota, tão comum em sua aparência quanto bem ajustada, que vivia com sua madrasta, que não era uma pessoa nem muito aberta nem afetuosa porque ela mesma tinha sofrido abusos durante a infância.
- Melhor. Mas eu já estou cheia de imagens negativas de mulheres! E as madrastas – ela sempre pagam o pato! Porque você não muda para padrasto? Faria muito mais sentido de qualquer jeito, levando em consideração o comportanmento que você vai descrever. E põe aí uns chicotes e umas correntes também. Nós todas sabemos muito bem como são esses homens de meia-idade, pervertidos e reprimidos –
- Ei, espera aí um minuto! Eu sou um homem de meia –
- Você fica na sua, Seu Abelhudo. Ninguém pediu para você meter o bedelho, ou o que você quiser chamar esse seu troço aí. Isso aqui é entre nós duas. Prossiga.
- Era uma vez uma garota –
- Quantos anos ela tinha?
- Não sei. Ela era jovem.
- Esse negócio vai acabar em casamento, não é?
- Bom, eu não queria estragar o suspense do enredo, mas – sim.
- Então você pode largar dessa terminologia condescendente. É mulher, minha amiga. Mulher.
- Era uma vez –
- Que história é essa de era? Chega do passado que já morreu. Quero que você me conte uma história sobre o presente.
- Uma vez –
- E aí?
- E aí, o quê?
- E aí, porque não duas vezes?
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