O juiz espanhol Baltazar Garzón pisou nos calos de gente ainda muito poderosa e agora está pagando caro pela sua coragem. O resultado da sua luta foi seu duro enquadramento pelo supremo espanhol, bem no estilo do brasileiríssimo “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. Há aqueles que crêem no caráter exemplar da transição democrática na Espanha e no Brasil, pelo caráter pacífico e conciliador por das duas. Mas essa transição permitiu que uma parte considerável da Espanha franquista, motivada pelos motivos mais torpes, insistisse em fingir que franquistas e republicanos eram simplesmente dois lados de uma mesma moeda. É uma manobra retórica bastante comum em vários lugares do mundo nos dias de hoje: em nome de uma pretensa equanimidade jogam-se repressores fascistas e reprimidos republicanos numa vala comum apontando atrocidades dos dois lados e, a partir daí, prega-se uma anistia igual a ambas a partes ou simplesmente espera-se por um esquecimento amplo, geral e irrestrito. Ofereço aqui o video que Almodóvar fez para demonstrar de forma mais eloquente o que quero dizer:
O refrão é claro: “não tive julgamento, advogado, ou juiz e minha família continua esperando/buscando justiça. Até quando?”
Até quando?
E há ainda mais um aspecto perturbador dessas transições “lentas, graduais e seguras”: aquilo que Augusto Monterroso sintetizou de forma genial num micro-conto:
El dinosaurio
Augusto Monterroso
Cuando despertó, el dinosaurio todavía estaba allí.
O conto foi escrito em 1959, ainda no começo do longo exílio do escritor guatemalteco no México. As interpretações são inúmeras – daí o impacto do conto – mas puxo pelo contexto para oferecer a que aqui me interessa. Monterroso tinha sido diplomata de Jacobo Arbenz, presidente da Guatemala derrubado pela CIA e os militares mais retrógrados do seu país. A derrubada de Arbénz marca o fim da primavera Guatemalteca, 10 anos de democracia no país. O que se seguiu foi um genocídio atroz. E por que é que o dinossauro continua ali, esperando o despertar do nosso sonho de democracia? Perguntem aos que forçaram Baltazar Garzón a abandonar seu trabalho de juiz.
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