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A infortuna crítica de Cruz e Souza

Ando lendo a fortuna crítica de Cruz e Souza. Acho que seria melhor chamá-la de “Infortuna Crítica.” O conteúdo é, em geral, positivo e simpático ao poeta e à obra. Mas o caminho para o inferno está pavimentado de boas intenções. São, na verdade, textos de uma involuntária alcatéia de amigos da onça, que fazem um melodrama barato da vida de Cruz e Souza e dão uma interpretação de fundo biográfico furadíssima para a obra de um poeta que falava com grande fluência e articulação sobre questões estéticas e existenciais complexas. A quantidade de bobagens racistas que se escreveu sobre a obra de Cruz e Souza só não é mais impressionante que a facilidade com que essas bobagens se repetem impunemente de prefácio em prefácio, de artigo em artigo, de livro em livro. 

Dentro do espírito fundamentalmente preguiçoso desse blogue, resolvi me explicar melhor simplesmente tomando um parágrafo típico da "Infortuna Crítica", substituindo o nome de Cruz e Souza por outro poeta famoso no Patropi:

“O ponto de partida do surto em beleza e dor do poeta branco Oswald de Andrade foi, é evidente, o drama da sua cor. De início toda a sua problemática se encerra nos estreitos limites desse drama. É o homem branco de classe alta sentindo-se culpado pelo desprezo que seus pares reservam contra os negros e índios do país e sendo hostilizado, esmagado pelo orgulho dos de sua própria raça, impelido por eles a uma vida de aflição e miséria e, no entanto, tomado de insofreável paixão pelo negro e pelo índio, pela mulher negra e índia, sobretudo.”  

Não estou aqui defendendo um escamoteamento da identidade racial de Cruz e Souza. O poeta tratou, sim, da questão da escravidão e da discriminação racial em vários textos importantes. Por exemplo, há textos de prosa como essa “História Simples”, em que o narrador se refere constantemente a um leitor/ouvinte bem específico:

“Miudinhas cintilações de diamantes, de prata, como vidro liquefeito, tremeluziam vivamente nos troncos e nos galhos das árvores. Havia então um ar de frescura, de purificação, de nitidez em toda a atmosfera e escala ascendente do verde, desde o verde-paris, claro e forte, até ao verde-mar, ao verde-bronze, mais cerrado e compacto.
Não sei se, naquele sítio de um aspecto pueril e dócil, poderia haver a invasão da maldade e do egoísmo do homem, Sinhá; mas sei entretanto que os meus olhos e que o meu coração, doídos e magoados, tiveram de presenciar isto: Um homem rude, de fisionomia cruel e trágica, apresentando todo o irracionalismo e temperamento animal explosivo, vergastava a duros golpes de relho, de pé atrás para retesar e dar toda a elasticidade e esgrima melhor ao músculo do braço, uma frágil mulher, escrava indefesa que não sei se ria ou chorava, se blasfemava ou suplicava, tanta era a descarga de impropérios que o terrível homem lhe rebentava as faces, como o estado de brusca excitação nervosa em que os meus sentimentos se achavam diante da mais ignóbil das cenas.
Oh! era brutal, não, Sinhá?
[...]
E mal sabe agora a Sinhá o que me ocorreu à idéia quando vi o caso que lhe contei: É que aquele desgraçado ente era uma mulher e vivia sob a pressão do chicote, num sítio afastado e pobre; e a Sinhá é uma mulher também e vive na cidade dos ricos, das luzes e dos rumores, sob a música e harmoniosíssima influência de um piano de Erard que geme scherzos dolentes atravessados de um luar de amor ou de uma balada meiga e saudosa cantada por nereidas de voz de prata e lábios de aurora, numa barca, à flor de espuma do mar azul.”


Daí a dizer que todo o poema de Cruz e Souza que menciona a cor branca é um lamento porque o poeta sofria por ser negro e queria ser branco... e por mais ridículo e mesmo ofensivo que isso pareça, é exatamente isso que vários críticos mais ou menos ilustres repetem a cada cinco páginas. Com amigos assim, não é de se admirar que Cruz e Souza seja tão pouco lido, discutido e pensado.

Comments

interessante sua versão alternativa.

você viu o filme do sylvio back sobre ele?
Anonymous said…
Até hoje não vi, Sabina. Você recomenda?

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