Skip to main content

O que deixa a desejar pode ser o melhor dos guias

Derek Walcott
A tradução às vezes me parece uma impossibilidade, principalmente no caso da poesia. Recentemente cheguei pelo FCBK a um poema de Derek Walcott. Li no caso uma tradução para o português do poema. Uma vez que eu leio inglês, fui logo procurar o original. No original encontro um poema que eu acho muito, muito superior. Seria o caso de simplesmente culpar o tradutor? Acho que não. Não sei se consigo me explicar. Vamos ver.

Logo nos primeiros oito versos, vejo uma enxurrada de desafios bem complicados. Aqui estão eles em inglês:

I live on the water,
alone. Without wife and children,
I have circled every possibility
to come to this:
a low house by grey water,
with windows always open
to the stale sea. We do not choose such things, 
but we are what we have made. 

A tradução a que tive acesso resolve esses oito versos assim:

Vivo nas águas, 
solitário. Sem mulher nem filhos. 
Atravessei todas as possibilidades 
para chegar até aqui: 
pequena casa em água cinza, 
janelas sempre abertas 
para o 
velho mar. Não escolhemos o destino, 
mas somos o que fizemos. 
Pintura de Derek Walcott

Ironicamente a dificuldade aqui vem do registro próximo do prosaico do poema - próximo mas não prosaico. Isso dificulta o encontro de boas soluções para coisas como "on the water", "circled every possibility", "a low house" e "stale sea". 
Por que tirar o sujeito do primeiro verso [obrigatório em inglês, opcional em português], se com isso se sai de uma redondilha menor [já tão ibérica] para um verso de quatro sílabas? 
E como sair de um discretamente quase prosaico "on the water" para um sublimoso "nas águas"? "On the water" é simplesmente viver na beira de um rio, lagoa, lago ou do mar - aqui no caso o próprio poema elucida que se trata do mar. Mas rejeitar uma solução sem apresentar uma resposta pelo menos um pouquinho melhor não vale!

No verso seguinte, opta-se por um "solitário" [pelo menos quatro sílabas] para traduzir "alone" [só duas] e, outra vez, uma simples e fluida redondilha, agora maior [outra vez forma já tão ibérica], vira um verso meio-de-pé-quebrado [digamos que de pé deslocado] com nove sílabas e acentos na terceira e sétima [terceira e sexta flui bem melhor por ser o mais comum no portugues]. 

"Atravessar possibilidades" dá para ser, mas outra vez me parece uma solução sublimosa para um simples [e tão rico] "circle every possibility". 

Low house não é "casa pequena"

De repente um desencontro no sentido contrário dos anteriores: "stale sea" é uma solução sublimosa que é traduzida com uma solução "invisível", que não chama qualquer atenção para si: "o velho mar".

"Destino" é mais uma tremenda pixotada sublimosa para um prosaico "such things". Veja bem: prosaísmo no registro não implica necessariamente em algo simples e tosco. As soluções de Derek Walcott são sempre sutis, abertas a leituras diferentes, ricas. Essa é aliás uma questão não só de tradução como de fatura poética mesmo: gente que fica brigando por uma dicção mais "poética" ou "prosaica" [não são esses os termos usados em geral] sem entender que essa escolha, em si, não garante nada. A solução "poética" aqui é mais pobre e menos sutil que o "such things" de Walcott.

Para completar: make e fazer têm uma relação capiciosa. O verso em inglês não é "what we have done" e sim "what we have made". Mais uma vez, criticar é bem mais fácil que oferecer alguma solução melhor.

Sempre acabamos lendo um outro poema em português; é inevitável. A questão é que fico na expectativa de um poema diferente mas tão bom quanto. E aí... Mas, ao mesmo tempo, acho importante reconhecer que essa minha leitura do original, essa abertura para atentar para certos detalhes do original, só aconteceu por causa da tradução. Os limites da tradução me serviram de guia na leitura do original, me apontando para esse jogo interessante entre múltiplos sentidos e uma simplicidade chã numa dicção que se aproxima da oralidade informal mais prosaica.

E quantas aspas não cabem entre estes "prosaicos" que sapequei pelo texto inteiro...

Comments

Popular posts from this blog

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p...