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Entre a pauta estridente e o ostracismo às moscas

1. Hoje mais do que nunca valorizo uma das grandes lições que aprendi da minha orientadora Candace Waid [até hoje um modelo para mim de inteligência, criatividade e humanidade nessa casa de loucos que é o meio universitário]. Quando eu discutia com ela sobre certos textos de crítica que eu achava péssimos, ela me recomendou que eu escolhesse com muito cuidado os textos com os quais eu iria me engajar criticamente, para não acabar sendo pautado por ideias desinteressantes. Acho que o conselho valeu para muita coisa, e hoje vale para uma coisa que mal existia quando ele me foi dado.

2. As redes sociais ocuparam, na minha pelo menos, todo espaço antes dedicado a jornais e televisão [é sempre bom ter isso em mente para evitar pessimismos exagerados] e elas fazem uma demanda constante aos usuários por opinião e por controvérsia. Somos instados a dar opinião sobre projetos de áreas como agricultura familiar ou ensino de ioga, investigações ou processos judiciais complexos, conflitos étnicos e religiosos e outros. Pior ainda, somos instados a dar opiniões taxativas, geradoras de polêmica. E assim somos, sem perceber, pautados por boçais geradores de bate-boca, muito frequentemente boçais que detestamos.

3. O problema de ser pautado e assim entrar barcas furadas é bem mais complexo, entretanto. Por exemplo, leio um breve artigo sobre ranking de universidades na América Latina. Na "discussão" do artigo que é um resumo apressado dos resultados do tal ranking, leio sobre o problema que representa para uma evolução dessas universidades nos rankings mundiais o "modelo napoleônico" que elas ainda adotam ao invés do "ideal humboldtiano" que é adotado no mundo anglo-saxão [e notem a nada sutil oposição entre o modelo Imperador francês malvado e o ideal humanista alemão bonzinho...]. O artigo é em inglês e foi publicado pela "Inside Higher Ed", criação de um pessoal saído do "Chronicle of Higher Education". Ambas instituições estão completamente inseridas na "indústria acadêmica" americana, onde os velhos burocratas acadêmicos com seus cachimbos e idéias "humboldtianas" sobre "artes liberais" são substituídos por novos burocratas acadêmicos com muito gel no cabelo, ternos impecáveis e muita fé na mágica dos "metrics", entre eles os que definem... rankings.

4. Bem no centro desse lindo e aparentemente altamente exportável modelo humboldtiano [tal como ele se apresenta hoje em dia nos Estados Unidos] está o sistema de efetivação dos professores universitários chamado "tenure". Ainda que ele seja cada vez menos parte do horizonte concreto da maioria dos profissionais do ensino superior, obrigados a trabalhar em condições cada vez mais precárias sem sequer a garantia de níveis básicos de sobrevivência a médio prazo, o "tenure" é o Santo Graal do sistema, a ambição primeira e o objetivo maior de todo aprendiz de professor universitário nos programas de doutorado. O longo e tortuoso processo de "tenure track" ao qual todos os professores universitários se sujeitam por pelo menos cinco anos na esperança de ter uma "carreira estável" é um longo e tortuoso processo de adestramento. Atenção constante aos regulamentos e regras, amor pelas santas convenções e hierarquias profissionais, respeito solene pelos prazos, veneração pelos títulos, condecorações e prêmios, devoção aos critérios aceitos e consolidados pela tradição, subserviência total à meta suprema de preservar e elogiar as instituições. Anos e anos seguindo à risca sem questionamentos as regras do jogo numa postura de total conformismo [essas são as regras e pronto] e servilismo [esses são os donos do seu futuro; tente agradá-los]. Não é de se admirar que a maioria dos sobreviventes do processo [uma minoria cada vez mais minoria nas universidades] sejam complacentes, carreiristas e conformistas.

5. Valeria a pena olhar um pouco mais atentamente para o tal conceito de artes liberais, tão caro ao tal sistema universitário americano. Uma "arte liberal" é concebida a arte dos homens livres - eram sete lá pelos fins da Idade Média. Elas se contrapunham às "artes aplicadas", ocupação de gente não-livre, escravos e outros pés-de-chinelo sem lenço nem documento. Nem arquitetura, nem pintura, nem escultura entravam no clube exclusivo das artes liberais [trivium e quatrivium] até que Alberti e companhia argumentassem que elas deveriam, sim, ser valorizadas como atividades dignas de "homens livres" e não de artesãos anônimos. Homens livres para praticá-las com as mãos limpas e sem suar a camisa. Para por aqui porque só uma meia-dúzia de moscas lê isso aqui e porque meu blogue não tem nem meia estrela no Guia Michelin/Qualis.

6. Só advirto que, completamente contra a corrente a qual me referi, não quero criar polêmicas boçais, mesmo sabendo que controvérsia gera tráfico de acessos e tráfico de acessos gera poder. Não quero extinguir nada. Não tenho nenhuma solução simples e definitiva para nada. Não sou nem contra nem a favor de Alberti, do Renascimento, de Humboldt, nem mesmo de Napoleão. Nessa época de declarações bombásticas e julgamentos sumários o que eu quero mesmo é ficar assim: às moscas.

Comments

Acompanhei os itens com atenção... Mas no fim, fiquei em dúvida sobre a questão com as artes liberais.
São disciplinas sendo cortadas, em favor do que é mais técnico e aplicado?
A universidade americana, quase sem exceções, segue um modelo que eles mesmos chamam de "Liberal Arts": são quatro anos de amadurecimento intelectual onde o aluno entra sem nenhuma direção predeterminada e pode então escolher um "major" [uma espécie de ênfase principal daqueles 4 anos]. Por exemplo, o sujeito pode ter um major em arquitetura, sair da universidade com seu "Bachelors" e procurar emprego na bolsa de valores, por exemplo. Se o aluno desejar se profissionalizar ele tem que, ao final desse curso, entrar para uma escola profissionalizante da universidade [direito, medicina, teatro, artes plásticas, arquitetura, etc]. Essas "escolas" dentro da universidade oferecem aulas mais gerais para a rapaziada fazendo seus primeiros quatro anos [seu Bachelor] e para os alunos que entram na sua escola para se formar naquela área mais específica. A questão é que tem havida uma debandada de alunos que costumavam fazer seus majors em literatura [principalmente inglês] e história [também considerada parte das Humanities] para a área da economia [principalmente finanças] e afins. Porque nos Estados Unidos também vigora uma separação forte entre "ciências sociais" e "humanidades", que no Brasil a gente agrupa em ciências humanas. Antigamente eles falavam que o sujeito entrava para a universidade para não especializar-se em nada para estar pronto para qualquer coisa depois. Só que a universidade ficou muito cara, a ansiedade de conseguir um emprego que justifique o investimento é grande e as universidades dependem cada vez mais de doações de pessoas muito ricas que ficaram ricas ou com finanças ou com algo relacionado com computadores/internet. As universidades públicas, pressionadas por cortes no orçamento dos estados, decidem, por exemplo, parar de oferecer latim ou grego clássico ou português ou hebraico porque essas línguas têm uma procura relativamente baixa e se concentram em aulas que ensinam a língua como um cursinho de línguas, sem dar muita bola para questões de cultura ou literatura.

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