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Prosa minha: Sonhos de Moctezuma

Sonhos de Moctezuma

Final do debate organizado em 1960
pela Escola de Arte da Philadelphia
publicado na revista Spring no mesmo ano.











Certos pecados têm precedência numa dada cultura, conferindo-lhe suas feições típicas. Moctezuma, como todas as outras cidades da região, vive fraturada entre clãs opostos provindos de uma mesma família – há quem cinicamente diga que se trata de um estratagema digno dos velhos reis portugueses através do qual os Andrades se perpetuam no poder desde a fundação da cidade. O que torna nossa cidade realmente especial é o fato que ela padece daquele pecado que um velho sábio considerava o rei de todos os demais: a Vaidade. A prevalência desse pecado entre nós nos diferencia de nossos vizinhos, tanto dos possessivos-compulsivos de Rio Pardo, escravizados entre a Cobiça de conseguir o que não têm e a Avareza de não perder o que acumularam, como dos dualistas tripolares de Taiobeiras, açoitados ora pela suavidade suicida da Ternura, ora pela inércia indiferente da Preguiça, ora pela fúria destruidora da Ira.
Essa Vaidade que é tão nossa trata-se de uma moléstia especular, um filtro que fabrica um mundo de ilusões a partir da experiência vivida. Moctezuma imagina a si mesma dividida entre dois tipos de desgraçados: os que se creem inferiores e arrastam as correntes da vergonha e os que se creem superiores e vergam a espinha sob o peso dos andaimes do orgulho. Estaríamos melhor que os nossos vizinhos, já que não sofremos com as paixões que os fustigam? Não creio. O prisma pelo qual enxergamos o mundo informa nossos atos, que por sua vez constituem nossos hábitos, que por sua vez compõem nosso caráter, que todos sabem ser o nosso destino. Como se vê, é uma questão de fugir do braseiro para cair no fogo.
Vejam, por exemplo, o sonho que me atormenta.

Sonho que por um acidente do destino sou transformado no farmacêutico da cidade. Carlos do clã da rua de Baixo, destinado por laços familiares para tal posto, havia fugido por incompatibilidade com a vida pacata do interior para se estabelecer como cronista da vida pacata do interior num jornal da capital. Por falta de outro Andrade que o substituísse, assumo o posto. Logo no meu primeiro dia aparece na loja um Paulista Turista, desses que fedem a protetor solar e andam com um chapéu enterrado na cabeça e uma máquina fotográfica pendurada no pescoço. Mal entra no estabelecimento, o sujeito me pergunta de bate-pronto: o pessoal em Moctezuma prefere o prefeito atual, Oswaldaugusto, ou o anterior, Mário Ribamárcio? O assunto é sumamente delicado. Respondo diplomaticamente que há quem prefira um e há quem prefira o outro. Insatisfeito, o Paulista Turista me pressiona: e você, o que acha? Sem vacilações respondo ao inconveniente visitante: Eu? Eu também! A não-resposta me parece perfeita, mas no sonho ela me corrói as entranhas. Incapaz de imitar o Cristo, tenho ímpetos de seguir meu predecessor e fugir de Moctezuma na calada da noite, mas o pavor de ser pego em plena fuga da cidade me paralisa. Pior, não consigo me decidir se serei crucificado por descobrirem minhas reais simpatias ou por ser desmascarado como um sofista desprovido de opiniões. Acordo suado, cansado, ofegante. Minha esposa atribui tudo à minha apneia do sono. Eu atribuo tudo a ela, a Vaidade.  

Comments

Gostei. :)
OBS - Que interessante o texto da ilustração. Quem é PG?
É o pintor Philip Guston, Sabina. O debate foi incluído num livro sobre ele que Letícia estava lendo.

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