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Na falta de lugar melhor

Eu diria que em torno de 40% da população brasileira [no máximo] está firmemente polarizada entre esquerda e direita num conflito cada vez mais feroz. Cada um desses dois lados conta com aproximadamente 20% do leitorado, e é bom lembrar que esses 20% são geralmente fragmentados entre posições significativamente diferentes. As pessoas de esquerda nunca, em hipótese alguma, votariam num almofadinha de coluna social e as pessoas de direita, dificilmente, votariam de novo num operário filho de retirantes. Mas os outros 60% da população poderiam votar em um e logo em seguida no outro sem passar por qualquer tipo de crise existencial. Nenhuma dessas duas minorias respeitáveis consegue eleger sozinha um candidato a cargo executivo numa cidade grande; talvez nem mesmo um senador.

Cabe sempre a esses candidatos convencer uma parcela respeitável daquele 60% que poderíamos chamar por falta de nome melhor de eleitores desengajados. Não gosto desse nome porque o acho pejorativo. Mas uso o termo mesmo assim porque não acho que seja uma questão de estar "alienado" ou desinteressado da política, mas sim de estar desengajado desse combate entre direita e esquerda. Imersos em suas bolhas respectivas que só reforçam sua convicções, os dois lados têm imensa dificuldade em lidar com uma maioria tão descompromissada com aquilo com que eles têm um compromisso tão firme. Eis uma prova cabal da existência desse grupo majoritário: o mesmo eleitorado de São Paulo elegeu para prefeito Fernando Haddad em 2012 e João Dória em 2016. Isso só seria possível se um número considerável de eleitores de Haddad em 2012 votasse em Dória em 2016. Essas pessoas pertencem aos 60% da população que não se alinha a nenhum dos dois campos. Pesquisas indicam que esses eleitores em geral tem valores de direita no que tange ao combate à criminalidade [eu diria valores punitivistas quase fascistas, defensores que são de espancamentos, castrações, linchamentos, massacres e penas de morte sumárias]. As mesmas pesquisas indicam que esses eleitores em geral têm valores de esquerda no que tange a políticas de educação e saúde [querendo amplo acesso garantido pelo estado e concordando com interferências do estado contra abusos da iniciativa privada]. Tomo as duas informações, com cauteloso ceticismo, como generalizações bastantes simplistas. Mas esses exemplos podem pelo menos deixar a gente vislumbrar a existência desse eleitorado tão dado a oscilações.

Nas últimas eleições para presidente prevaleceu o poder de convencimento da esquerda nos cargos majoritários, mas nem sempre na hora de eleger governadores e prefeitos. Esse poder de convencimento da esquerda sempre ficou muito aquém do necessário quando se trata de eleger bancadas majoritárias de vereadores, deputados estaduais, federais e senadores. Quem cresce e aparece cada vez mais nessas bancadas são os BBB da direita: Bala, Boi e Bíblia. Essa é a direita que tomou conta do parlamento brasileiro em 2014, pilotou o espetáculo grotesco de um golpe parlamentar e se instalou de mala e cuia no poder executivo federal a partir daí.

A questão para mim fundamental é: por quê? O espetáculo de gente que escreve elegias à sabedoria popular quando ganha uma eleição e escreve queixas magoadas contra a ignorância e alienação do mesmo povo quando perde a eleição seguinte é sintoma de uma polarização que lembra muito uma briga de torcedores de futebol. Esse se assemelha ao espetáculo de gente que tece elogios à cobertura estrangeira quando essa dá relevo ao que a imprensa nacional [francamente partidária] escamoteia, mas é capaz de acusar essa mesma cobertura estrangeira de imperialista e mal informada quando ela, por exemplo, noticia fofocas [copiadas de colunas sociais de jornais brasileiros] sobre abusos alcoólicos de Lula. Nenhum dos dois espetáculos retóricos ajuda a entender o buraco em que o Brasil se meteu a partir da eleição legítima do congresso mais venal e conservador que já tivemos desde a redemocratização.

Duvido muito de explicações que se fiam no moralismo de um 60% do eleitorado que é, acima de tudo, pragmático. Basta olhar para os últimos trinta anos. Quem não se lembra ou não sabe, lembre-se ou saiba que o PT espumava como uma UDN indignada durante os anos de FHC no poder. Tinha motivos de sobra para isso, com privatizações feitas com empréstimos generosos dos bancos públicos e descontos para lá de camaradas. Procuradores engavetadores e a cobertura da mídia explicariam as duas eleições vencidas por FHC? Na melhor das hipóteses só em parte. O eleitorado fora da órbita daqueles 40% é fundamentalmente pragmático e apoiou o PSDB e FHC enquanto sentiu que eles ofereciam estabilidade financeira e uma melhoria relativa de serviços aqui e ali. Nem a emenda da reeleição, nem a vergonhosa venda da Vale abalaram o governo FHC e o PSDB, que só caiu do cavalo mesmo quando a inflação, a desvalorização cambial, o desemprego e a longa recessão acabaram de tirar todo o lustre do Plano Real. Os esquemas de controle político do PSDB  - e o esqueleto da política econômica do PSDB de FHC - foram mantidos e talvez até expandidos durante os anos em que o PT esteve no poder. Como um autêntico aprendiz de Getúlio Vargas, Lula misturou avanços sociais com conciliações com o setor do poder ruralista e com o setor do poder evangélico e a distribuição generosa de benesses a empreiteiros. A ideia de que a mídia no Brasil "controla" o eleitorado não faz sentido - como teria Lula e Dilma ganhado quatro eleições para presidente se essa mídia fosse assim tão absolutamente controladora? A maioria daqueles 60% apoiou o PT enquanto sentiu que se beneficiava diretamente do crescimento, com a geração de emprego e o aumento do poder aquisitivo. Esse mesmo eleitorado preferiu reeleger Dilma contra um programa neo-liberal rastaquera de um candidato fraquíssimo em 2014, apesar do apoio quase irrestrito da mídia nacional. Foi com o agravamento da crise econômica que esse eleitorado, para usar um termo que a direita tentou emplacar a um tempo atrás, "cansou" e foi assistir o golpe de camarote, quando não deu corpo aos grupelhos alucinados que falam de Cuba e comunismo como se Meirelles e Kátia Abreu fossem neo-bolcheviques.

Desde o primeiro FHC até Dilma, esse grupo tenebroso [mas plenamente legitimado pelo voto popular] recebia mensalos, mensalinhos e mensalões, repartições, ministérios e outros cargos em troca de apoio restrito em nome de uma tal de governabilidade. Mas a eleição que deu a Dilma um segundo mandato trouxe uma mudança significativa: deu ao BBB um poder maior que acabou quebrando a balança desse equilíbrio corrompido. Ao invés de xingar o mesmo eleitorado que mereceu louvações emocionadas por reeleger Dilma, caberia à esquerda perguntar-se sobre o que aconteceu e reconhecer no achincalhe temeroso da previdência, das leis trabalhistas e do SUS uma oportunidade para trazer de volta ao seu lado uma parcela razoável daqueles 60%, antes que um miserável Berlusconi de fundo de quintal ou um aprendiz de Duterte o façam.

Comments

Pedro da Luz said…
Ultimamente, estou achando que há um lugar melhor para entender essa imensa crise, que parece um beco sem saída; a teoria da hegemonia de Gramsci. O velho sardo, mesmo preso por Mussolini construiu em torno de conceitos como revolução passiva, a questão meridional, americanismo, cosmopolitismo e hegemonia um sistema de pensamento bastante persuasivo ainda para o nosso tempo. Apesar de sua atividade textual fragmentada e muitas vezes ligadas a Itália pós primeira guerra, há nos seus textos uma construção sistêmica voltada para o longo prazo, e uma percepção aguda do nosso tempo. Enfim, keep calm and read Gramsci...
Sem dúvida que a teoria da hegemonia é uma ótima maneira de pensar a questão, Mano. Li bastante na época do meu curso de letras e até hoje ele me é útil. Ler Gramsci e pensar em como concatenar um discurso que chegue além do espaço confinado das pessoas que, como você e eu, temos convicções firmes na política. Antes que as pessoas sejam seduzidas por algum Mussolini tropical...
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