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3. Esse monstro chamado "público geral"


Freud já avisava numa nota de pé de página meio melancólica que os conceitos “masculino” e “feminino” eram conceitos científicos por demais vagos e imprecisos. Os dois são difíceis de definir pela sua tendência a transformar-se em espelhos que simplesmente refletem os limites e possibilidades da cultura e da imaginação de quem os formula. Você tenta definir masculino e feminino e termina oferecendo um documento transparente e preciso daquilo que você acredita ser o masculino e o feminino.

Como o conceito de raças entre os seres humanos, a ideia de um masculino e um feminino existem objetivamente porque as pessoas acreditam neles. Como várias outras invenções culturais, essa ideia muda com o tempo e muda de lugar para lugar. Nada disso é particularmente interessante para mim, porque pertence ao campo do óbvio para quem estuda o assunto. Entretanto quem estuda as chamadas ciências humanas sabe muito bem que fora do seu meio acadêmico mais restrito é preciso reiterar todos os dias as obviedades que sequer passam pela cabeça desse monstro que é chamado de “o público em geral”.

Alguns dos meus colegas, encantados com as possibilidades que as redes sociais nos ofereceram [supostamente] para comunicar-se com o tal monstro, empenham-se com afinco em combater obviedades e destruir estereótipos. Mas não devíamos esquecer que as obviedades [que são sempre dos outros, não é de desconfiar?] e aquilo que poderíamos chamar de estereótipos, não são simplesmente mentiras que precisam ser desmascaradas pelos sábios da tribo. O estereotipo deriva seu particular poder de sedução coletiva da sua capacidade aguda de observação de um determinado comportamento.

Escravos, por exemplo, fugiam do trabalho como o Drácula foge da luz do sol e viviam em condições de higiene horríveis. O conteúdo de perversidade do estereotipo está um pouco mais adiante, na explicação para aquele comportamento, uma explicação que naturaliza aquilo que é cultural, que transforma em essência aquilo que é apenas circunstância: escravos fogem do trabalho e vivem em condições horríveis de higiene porque são negros e negros nascem desprovidos da vontade de trabalhar e de manter sua higiene. Escravos fugiam do trabalho para sobreviver [seus senhores tinham uma certa tendência a matá-los de tanto trabalhar] e não tinham condições mínimas de higiene porque não recebiam o mínimo em termos de roupa, água e sabão e eram ensinados na base da cacetada a ver sua roupa, água e sabão como propriedade de outra pessoa.

Voltemos ao masculino e ao feminino. As definições dos dois gêneros não fazem mais que nos mostrar como cada lugar em cada momento histórico diferente, via os dois gêneros. Um fantasma permanente: num mundo dominado por homens, o masculino era visto como o comandante “natural” e o feminino como subalterno também “natural”. Como acontece nas culturas ocidentais com várias dessas categorias que se montam em pares de opostos dentro de um contexto de dominação [bárbaros e romanos, cristãos e pagãos, cidadãos e imigrantes ilegais], aquela categoria que se encontra sempre do lado errado do cassetete [levando porrada] é definida em termos ou de idealização ou demonização. E eis que entendemos a complementaridade da “Virgem Inocente” e da “Destruidora de Lares” e todas as metamorfoses que vão modernizando [e assim preservando] as duas categorias.

Por isso mesmo é que esse gesto tão repetido de “contrariar” um estereotipo termina, suspeito, reforçando-o ainda mais. O que fazem todos esses filmes e programas de TV com suas super-mulheres que carregam caminhões cheio de areia com uma só mão, mulheres-soldado que atiram com duas bazucas enquanto fazem piadinhas sarcásticas, mulheres poderosas que lideram com mão de ferro imensas instituições políticas ou econômicas, mulheres detetives de capacidades dedutivas sobre-humanas e senso de justiça inabalável, mulheres justiceiras protetoras dos frascos e dos comprimidos? Será que estaremos livres para imaginar gênero e sexualidade em outros termos mantendo viva a ideia de dois opostos complementares tão cara ao universo maniqueísta da comunicação de massa [esse produtor monstruoso de melodramas anabolizados]? Será que estaremos pelo menos mais livres, e isso já é o suficiente?

Acho impressionante que uma das reflexões mais poderosas que eu conheço sobre esse assunto venha de Machado de Assis, um escritor do século XIX. “As Academias de Sião” foi escrito e publicado há mais de 100 anos! Não é um espanto que ainda acreditemos que almas são masculinas ou femininas [e nada além]? Não vou resumir aqui o conto – ele tem que ser lido com as suas sutilezas literárias. Mas termino com a seguinte constatação, também bastante simples: aqueles que tentam surfar nas ondas de um público maior, além dos muros da academia, deviam também se preocupar em não ser pautados pela ignorância que nos cerca. A conquista da aprovação do senso comum pode chegar cobrando caro, exigindo desses sábios de FCBK justamente a transformação deles em perfeitos comentaristas de CBN.

Comments

Muito bom! Desatou alguns nós que eu trazia em relação aos empoderamentos tipo mulher maravilha. Obrigada
Oi, Norma! O conto do Machado de Assis é que é o bicho, vale a pena demais!

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