Freud já avisava numa nota de pé de página meio
melancólica que os conceitos “masculino” e “feminino” eram conceitos científicos
por demais vagos e imprecisos. Os dois são difíceis de definir pela sua tendência
a transformar-se em espelhos que simplesmente refletem os limites e
possibilidades da cultura e da imaginação de quem os formula. Você tenta
definir masculino e feminino e termina oferecendo um documento transparente e
preciso daquilo que você acredita ser o masculino e o feminino.
Como o conceito de raças entre os seres
humanos, a ideia de um masculino e um feminino existem objetivamente porque as
pessoas acreditam neles. Como várias outras invenções culturais, essa ideia
muda com o tempo e muda de lugar para lugar. Nada disso é particularmente
interessante para mim, porque pertence ao campo do óbvio para quem estuda o
assunto. Entretanto quem estuda as chamadas ciências humanas sabe muito bem que
fora do seu meio acadêmico mais restrito é preciso reiterar todos os dias as
obviedades que sequer passam pela cabeça desse monstro que é chamado de “o público
em geral”.
Alguns dos meus colegas, encantados com as
possibilidades que as redes sociais nos ofereceram [supostamente] para
comunicar-se com o tal monstro, empenham-se com afinco em combater obviedades e
destruir estereótipos. Mas não devíamos esquecer que as obviedades [que são sempre
dos outros, não é de desconfiar?] e aquilo que poderíamos chamar de estereótipos,
não são simplesmente mentiras que precisam ser desmascaradas pelos sábios da
tribo. O estereotipo deriva seu particular poder de sedução coletiva da sua
capacidade aguda de observação de um determinado comportamento.
Escravos, por exemplo, fugiam do trabalho como
o Drácula foge da luz do sol e viviam em condições de higiene horríveis. O conteúdo
de perversidade do estereotipo está um pouco mais adiante, na explicação para
aquele comportamento, uma explicação que naturaliza aquilo que é cultural, que
transforma em essência aquilo que é apenas circunstância: escravos fogem do
trabalho e vivem em condições horríveis de higiene porque são negros e negros nascem
desprovidos da vontade de trabalhar e de manter sua higiene. Escravos fugiam do
trabalho para sobreviver [seus senhores tinham uma certa tendência a matá-los
de tanto trabalhar] e não tinham condições mínimas de higiene porque não recebiam
o mínimo em termos de roupa, água e sabão e eram ensinados na base da cacetada
a ver sua roupa, água e sabão como propriedade de outra pessoa.
Voltemos ao masculino e ao feminino. As definições
dos dois gêneros não fazem mais que nos mostrar como cada lugar em cada momento
histórico diferente, via os dois gêneros. Um fantasma permanente: num mundo
dominado por homens, o masculino era visto como o comandante “natural” e o
feminino como subalterno também “natural”. Como acontece nas culturas
ocidentais com várias dessas categorias que se montam em pares de opostos
dentro de um contexto de dominação [bárbaros e romanos, cristãos e pagãos,
cidadãos e imigrantes ilegais], aquela categoria que se encontra sempre do lado
errado do cassetete [levando porrada] é definida em termos ou de idealização ou
demonização. E eis que entendemos a complementaridade da “Virgem Inocente” e da
“Destruidora de Lares” e todas as metamorfoses que vão modernizando [e assim
preservando] as duas categorias.
Por isso mesmo é que esse gesto tão repetido de
“contrariar” um estereotipo termina, suspeito, reforçando-o ainda mais. O que
fazem todos esses filmes e programas de TV com suas super-mulheres que carregam
caminhões cheio de areia com uma só mão, mulheres-soldado que atiram com duas bazucas
enquanto fazem piadinhas sarcásticas, mulheres poderosas que lideram com mão de
ferro imensas instituições políticas ou econômicas, mulheres detetives de capacidades
dedutivas sobre-humanas e senso de justiça inabalável, mulheres justiceiras
protetoras dos frascos e dos comprimidos? Será que estaremos livres para
imaginar gênero e sexualidade em outros termos mantendo viva a ideia de dois
opostos complementares tão cara ao universo maniqueísta da comunicação de massa
[esse produtor monstruoso de melodramas anabolizados]? Será que estaremos pelo
menos mais livres, e isso já é o suficiente?
Acho impressionante que uma das reflexões mais
poderosas que eu conheço sobre esse assunto venha de Machado de Assis, um
escritor do século XIX. “As Academias de Sião” foi escrito e publicado há mais
de 100 anos! Não é um espanto que ainda acreditemos que almas são masculinas ou
femininas [e nada além]? Não vou resumir aqui o conto – ele tem que ser lido
com as suas sutilezas literárias. Mas termino com a seguinte constatação, também bastante simples: aqueles que tentam surfar nas ondas de um público maior, além dos muros da academia, deviam também se preocupar em não ser pautados pela ignorância que nos cerca. A conquista da aprovação do senso comum pode chegar cobrando caro, exigindo desses sábios de FCBK justamente a transformação deles em perfeitos comentaristas de CBN.
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