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Diário de Babylon

Quando eu cheguei aos Estados Unidos para estudar um fenômeno curioso aconteceu. Mais de dez vezes eu telefonei para alguém anunciando um apartamento para alugar e, ao perceber que eu era latino americano, fui informado que o imóvel já tinha sido alugado. Só depois de vários dias, quando eu aprendi a omitir minha origem, conseguimos um apartamento para alugar. Esse foi apenas o cartão de visitas. Depois vieram uma seleta de professores racistas, colegas de curso racistas e até funcionários racistas. Depois venho a enfermeira da clínica onde minha esposa constatou a gravidez me mandando voltar para o meu país. Depois veio o guardinha de imigração proibindo minha esposa grávida de seis meses de se sentar na sombra num calorão de Califórnia. Depois veio a volta ao Brasil, exaustos e perdidos, com um bebê nos braços e a cabeça mexida para sempre.

Quando voltei para trabalhar nos Estados Unidos, agora como professor universitário, me choquei com um grupo de alunos de fraternidade que, claramente embriagados, postaram-se na frente do "Women's Center" da universidade com cartazes que diziam "We Love Yale Sluts" [Nós Amamos as Piranhas de Yale] enquanto cantavam "No means yes! Yes means anal!" [Não quer dizer sim! Sim quer dizer anal!] Fizeram isso em plena luz do dia em dia de semana, e depois ainda postaram vídeos e fotos nas redes sociais. Mas o que me surpreendeu mesmo foi o que aconteceu depois: nada! Nas redes sociais frequentadas pelos alunos mais de um deles [adivinhem o gênero, a etnia e a conta bancária da família...] se queixava da falta de humor das feministas que não teriam entendido que tudo não passava de uma "brincadeira". Por parte da universidade, só enrolação. Condenações de praxe e promessas de investigação que deram em nada. Outros casos menos abertamente escandalosos mas talvez mais absurdos me acompanharam durante os outros anos que passei por aqui. Não tenho a paciência e a concentração exigidas para falar de todas eles. Creio que os que citei já são suficientes.

Antes de pensar em vir para Oklahoma, acompanhei um caso de racismo com fraternidades aqui. Fiquei impressionado com a rapidez e energia da reação do presidente da universidade na época. Semana passada outro incidente. E hoje mais um. Dessa vez sob a liderança de um presidente/empresário/mega-milionário que, quando perguntado sobre a importância da diversidade, cita a si mesmo como exemplo. Já era de se esperar a fraqueza da reação, devidamente recheada de promessas vagas e platitudes e de referências lacrimosas a Martin Luther King, um homem odiado intensamente enquanto viveu, até ser assassinado covardemente. "Damage Control" dizem os profissionais de relações públicas.

Confrontado com a frustração e a revolta de muita gente reunida num mesmo espaço e no calor da hora, o presidente da universidade se ofendeu e disse que não tinha responsabilidade pelo que tinha acontecido. Talvez não seja mesmo justo jogar toda a responsabilidade pelo que fazem um bando de barangos lourinhos nas costas do presidente lourinho da universidade. Quando um aprendiz de político oxigenadamente barango lança sua candidatura a presidência chamando imigrantes mexicanos em geral de estupradores e traficantes de drogas e, depois de inúmeras outras instâncias de discursos e atitudes racistas, termina ganhando as eleições, toda uma multidão de branquinhos e branquinhas de cabelinho escovadinho e olhos claros recebeu uma mensagem bastante clara: seja escrotamente, babacamente, abertamente racistas e/ou machistas, façam como os meninos com bonés MAGA tirando um sarro de um senhor indígena protestando dignamente em Washington, chame os outros de nomes ofensivos, agrida e ofenda e humilhe os outros sem pensar duas vezes, exiba sem pudor a sua ignorância e o seu privilégio de ser parte da raça dominante. Vá em frente! Afinal isso aqui é tudo seu! Não basta ser ignorante e agressivo; é preciso transpirar orgulho por isso.

Do outro lado, desânimo, cansaço e às vezes desespero. Escapismo, medo e raiva. Nos reunimos para chorar pitangas e oferecer consolo uns aos outros enquanto o mundo lá fora daquela sala espaçosa nos ignora completamente. Deveríamos, quem sabe, chorar nossas pitangas na porta das fraternidades e sororidades que todos sabem ser segregadoras e racistas. Quem sabe atirar rosas ou tomates nos pomposos edifícios coloniais que lhes servem de sedes. Quem sabe rir da baranguice, do ridículo senso de superioridade, da ignorância. Quem sabe?

Comments

Vivian said…
Sabe, Paulo, eu vivi em orfanato durante dez anos. Quando fui para a quinta série, eu e outras meninas do orfanato, as que tinham as melhores notas, uma meia dúzia, ganhamos uma maldita bolsa num maldito colégio particular. Eu não queria estudar lá, de jeito nenhum. Mas não pude escolher e fui, contra todas as minhas forças, obrigada a frequentar aquele colégio de ricos. Já na oitava série, depois de anos de humilhação, segregação, insultos, acusações por coisas que não fazíamos e mais uma porção de maldades "inocentes", conforme definiam os professores, a supervisora, a diretora e sua assistente, pois bem, na oitava série, uma professora extremamente racista e que repudiava as meninas do orfanato, pediu que apontássemos o que gostaríamos que mudasse ou permanecesse na escola. Após algumas leituras e comentários, eis que surge um espécime da estirpe ariana a esbravejar que naquela escola deveria ser proibida a entrada de negros e de pobres. Sabe o que a professora fez? Nada, absolutamente nada. Alás, ela riu e impediu que eu e minha colega de orfanato reagíssemos. O lourinho?! Ah, ele recebeu os aplausos de boa parte doa alunos e uns afagos da professora. E ate o último dia de aula nós duas continuamos a ser chamadas de as comedoras de lavagem. Isso foi nos idos de 1991. O que mudou de lá para ca? Acho que nada.
Puxa, Vivian, sinto muito. Gostaria de poder fazer alguma coisa. Acho que a gente faz. A gente constrói essa estranha comunidade virtual e troca experiências e se conforta. Para mim o mais importante é lugar contra a amargura. Talvez seja cômodo ficar amargo, talvez seja uma questão de temperamento. Eu tento continuar positivo apesar de tudo, trabalhando quietinho no atacado, conversando com as pessoas que também valorizam a sensibilidade, trocando ideias sobre como conseguir encontrar espaços para respirar em liberdade. Por isso é que eu gosto de escrever nesse cantinho mais tranquilo, mesmo sabendo que nas redes sociais é que a gente atinge mais gente. Tamos juntos!

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