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Poesia portuguesa: Miguel Torga e o Brasil


Coimbra, 16 de junho de 1970.

BRASIL

Brasil onde vivi, Brasil onde penei,
Brasil dos meus assombros de menino:
Há quanto tempo já que te deixei,
Cais do lado de lá do meu destino!

Que milhas de angústia no mar da saudade!
Que salgado pranto no convés da ausência!
Chegar. Perder-te mais. Outra orfandade,
Agora sem o amparo da inocência.

Dois pólos de atracção no pensamento!
Duas ânsias opostas nos sentidos!
Um purgatório em que o sofrimento
Nunca avista um dos céus apetecidos.

Ah, desterro do rosto em cada face,
Tristeza dum regaço repartido!
Antes o desespero naufragasse
Entre o chão encontrado e o chão perdido.

Miguel Torga (1907-1995), Diários, Vols IX a XII, 219

O poeta, contista e memorialista Adolfo Correia da Rocha (Miguel Torga) nasceu em Portugal em família humilde e amigrou para o Brasil com 12 anos e ali viveu até 1925, quando um tio decide patrocinar seus estudos após ele ter se destacada no Ginásio Leopoldinense.

Encerra o livro Traço de União (Temas Portugueses e brasileiros) com carta a Ribeiro Couto que tem o seguinte trecho: "deixaram de ser o que eram, e amam o que as fez diferentes. Aceitar uma vida sem passado, eis a grandeza dos povos americanos. Do povo brasileiro em particular, que não tem uma pedra carcomida onde repouse a memória. O estímulo só lhe pode vir do futuro que construir. Não calculas o respeito que senti por certos camaradas teus conterrâneos que olhavam a arquitetura de algumas fábricas de S. Paulo com o embevecimento com que eu contemplo a Sé Velha" https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/adriano-moreira/interior/traco-de-uniao-4780382.html

Em 21 de junho de 1951 em Coimbra ele comenta em artigo sobre José Lins do Rêgo, "Assim como o Brasil nos desconhece, desconhecemos nós o Brasil. Porque ficamos fiéis à imagem burocrática de uma colónia, fugiu-nos a fisionomia de uma pátria nascente; porque ficou fiel à imagem dominadora da metrópole, esfumou-se-lhe o papel de uma pátria materna. E, longe de nos aproximarem, as aproximações têm-nos separado. É que elas não têm sido feitas a partir de uma justa atualização de valores." https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/adriano-moreira/interior/traco-de-uniao-4780382.html


Comments

Unknown said…
Que poema atual, Paulo! Escrito em Portugal, em 1970, e fico com uma sensação de ter sido escrito ontem.
O passado deixado pra lá, o presente que apresenta melancólico e o futuro que está por construir...
Muito atual não acha?
Sem dúvida, Cláudia. Ele era um homem dividido entre dois mundos [o Brasil da infância e o Portugal da vida adulta] e, na minha leitura, interpreta aí um sentimento que eu tenho às vezes, de viver em estado de saudade permanente, sempre dividido - "desterro do rosto em cada face".
Que bom que você gostou do poema.
Eu aqui tento criar aqui no "às moscas" um espaço mais sereno e reflexivo que o FCBK, que às vezes parece um salão de festas lotado, com barulho e confusão demais. Mas de uns tempos para cá a captação de gente para cá ficou mais difícil por causa do algoritmo do FCBK.
Minha sina é trabalhar assim, no varejo miúdo, investindo na qualidade mais que na quantidade.
Bem vinda!

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