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De balbúrdia em balbúrdia I

    Ano 2000. Lembro dos professores de história e matemática explicando que, ao contrário do que as pessoas tinham declarado para programas de televisão durante as festas de reveillon, nós não estávamos iniciando um novo milênio. Nosso mundo ocidental começou a contagem no Ano Domini, ou seja, no ano do nascimento de Cristo. Aquele foi o 1, não tivemos um ano zero. Por isso, só completaríamos  o milênio quando acabasse o dia 31 de dezembro de 2000. E foi essa a inspiração da camiseta comemorativa do nosso terceirão. De um tecido azul celeste igual ao da camisa do Cruzeiro, saltava em letras garrafais o título  "Os últimos do milênio!". 
      Nós, "os últimos do milênio", fomos os primeiros a cursar o Ensino Médio ao invés de Científico e muitos de nossos professores confessavam que não sabiam muito bem o que isto significava. Também participamos de uma das primeiras edições do Exame Nacional do Ensino Médio, o ENEM. Sobre ele, aliás, líamos notícias conflituosas nos jornais. Ninguém entendia muito bem para que serviria. Uns diziam que era só uma avaliação externa do governo, outros que seria importante para a composição de um histórico escolar que ajudaria até na hora de arranjar emprego, e poucos eram os que acreditavam que seria de alguma valia para acessar uma vaga em universidade pública. Minha mãe estava entre os poucos e por isso eu viajei  mais de trezentos quilômetros até Juiz de Fora, no banco do carona da Elba do meu pai, ouvindo Janis Joplin na companhia dele e de um amigo chamado Sidney com quem rachamos a gasolina. 
     Apesar de ter feito a prova com sono e fome, eu me sai muitíssimo bem. O resultado chegou pelo correio e tinha gráficos representando minha média ao lado da média nacional. A média nacional estava em tudo abaixo de 50% de aproveitamento. A minha estava em tudo acima de 90%, exceto em matemática, que tirei 7,4 de 10. A mãe me deu beijos, meu pai passou a mão repetidas vezes na minha cabeça, eu me senti aliviada e isso foi tudo o que aconteceu como consequência. As universidades resistiam à mudança em seus processos de seleção, o governo pressionava e fazia campanha para que os alunos aderissem ao exame. Os cartazes de divulgação e as propagandas oficiais em horário nobre anunciavam uma tal educação para a vida que era bonita, que era a ideal (nisso eu ainda acredito) e diziam que o ENEM avaliaria habilidades e competências e não necessariamente conteúdos. Nos anos seguintes, com a minha média, eu conseguiria entrar em medicina na UFJF se eu quisesse, mas nós, os "últimos do milênio", estávamos adiantados: pegamos o bonde parado e saímos antes que ele partisse. 
      Dezembro se aproximava e a cada dia eu sentia mais o peso de ter que escolher ser alguma coisa. Nunca tirei notas geniais, não fiz muitos amigos, não namorei ninguém e fui uma negação em todos os esportes que pratiquei. Apesar disso, passadas tantas séries desde a primeira, finalmente, eu estava bem adaptada ao ambiente escolar e sentia que era uma pena ter de abandoná-lo agora. Eu era boa em história, português, literatura, filosofia, artes e sociologia. Eu era péssima em matemática, razoável em biologia e um zero à esquerda em química. Física, achava interessante. Minha mãe dizia que não me queria professora como ela, meu pai não dava opinião e eu me pensava incapaz de calcular a construção de qualquer coisa que não caísse, de ver sangue sem desmaiar ou de decorar leis. Todos - incluindo meus pais, os professores e os colegas de classe -, sei lá por quê, esperavam que eu fizesse uma faculdade. Para atender às expectativas deles, já que eu mesma não tinha nenhuma, fui pesquisar quantos concorrentes disputariam a mesma vaga e quais seriam as matérias cobradas na prova discursiva de cada curso. Arquitetura me acenou com a previsão de 12 candidatos por vaga e as disciplinas física e história na segunda fase, por isso me inscrevi no vestibular da UFV para esse curso. 
      Aquele foi meu único bilhete, digamos assim. A vida toda eu tinha sido aluna de escola pública, e sem aditivos. Quer dizer, com o salário de professora de minha mãe e o de fiel de armazém de café do meu pai, dava pra gente viver, viajar para a praia nas férias e ter uma Elba vermelha ano 92 na garagem, mas não dava pra pagar cursinho de inglês ou pré-vestibular. Na cidade de dez mil habitantes em que morávamos, até saber o que fazer pra entrar numa universidade pública já era privilégio de uma minoria da qual eu só fazia parte por ser filha de professora.
      Dezembro se aproximava e outra vez viajamos eu, meu pai e o Sidney, na Elba, ouvindo Janis Joplin. Minha barriga doía e vez por outra tínhamos que parar pra eu correr pra algum banheiro. Se me perguntassem, eu dizia que estava calma, porque eu realmente acreditava que estava. Só muitos anos depois fui saber que aquilo era sintoma de ansiedade. 
     Enquanto esperava a hora da prova na portaria do prédio do Coluni, uma menina meio gótica puxou papo comigo dizendo que nunca tinha visto tanta gente mal vestida num só lugar. Não comentei nada, mas internamente achei graça dela vir falar isso justo pra mim. De madrugada, antes de sair de casa, eu tinha combinado minha única calça jeans com uma camiseta preta de malha da mãe. Depois amarrei uma blusa roxa de moletom na cintura e um rabo de cavalo no cabelo imensamente comprido que eu tinha na época. Para fechar com chave de ouro o look, calcei o All Star preto de cano longo que o Tio Bauer só me deu de presente porque tinha ficado grande para o Rafael, achei que estava muito bom para o momento. Apesar de realmente considerar todos os presentes na fila muito mais bem vestidos, bonitos e preparados do que eu, concordei com o que a moça gótica disse. Estabelecido esse contato inicial,  ela se sentiu a vontade para me contar como tinha sido entediante a noite passada no hotel com aquelas pessoas mal vestidas. E dos relatos que vieram em seguida, pude aprender que existiam excursões que viajavam de cidade em cidade fazendo uma espécie de maratona, cansativa e cara, prestando vestibular atrás de vestibular. 
A inscrição para o processo seletivo do curso de arquitetura da UFV - isso eu nunca esqueci - custava R$ 70,00, foi minha mãe quem pagou a minha. Os professores de Minas ganhavam um pouco menos que dois salários mínimos que, no início dos anos 2000, eram exatos R$ 150,00. Saber que ela tinha investido mais que um quarto de seu salário mensal em mim fazia minha cabeça rodar, sensação que eu interpretava como sono e, por estar com sono sabendo que minha mãe tinha investido tanto em mim, eu me culpava. Foi com esse sentimento que fiz os dois dias de prova. No primeiro deles, quando cheguei na parte da matemática, fui passando páginas e percebendo que nunca tinha visto nada daquilo na escola. Regra de três pra lá, regra de três pra cá, improvisei. O sono aumentou e dei umas boas pescadas. Numa delas acordei com um examinador confuso olhando pra mim e com o chicletes meio fora da boca. Apesar dos pesares, fiz a prova toda. Ao final do dia, o pai descobriu que era mais barato nós viajarmos os 200 km de volta para casa, dormirmos por lá, depois viajarmos os 200 km até Viçosa outra vez, do que pagar hospedagem na cidade. Foi o que fizemos só eu e ele, porque o Sidney ficou. 
No segundo dia de prova eu estava com mais sono e com mais dor de barriga do que no primeiro, mas física e história eram a minha língua. Bem, era isso que eu pensava até abrir o caderno. Uma questão de história sobre a Bahia dos Porcos. Eu nunca tinha ouvido falar em Bahia dos Porcos! Que porcaria era essa?!!! Física estava OK. Não consegui terminar os cálculos, porque minha base em matemática era sofrível, mas montei todas as contas tentando mostrar para quem quer que fosse corrigir que eu tinha interpretado muito bem os problemas. 
Na viagem de volta, eu não suportava mais ouvir Janis Joplin, mas não encontramos outra fita no porta-luvas. O resultado dessa prova não chegou pelo correio. Meses depois, a mãe abriu a porta de casa com a notícia de que o filho da diretora da escola onde ela trabalhava já sabia que não tinha passado. Nos idos anos 2000, as universidades divulgavam a classificação dos concorrentes às suas vagas num jornal que não chegava em nossa cidade, e pela internet. Internet, naquela época, era coisa de rico e de cidade grande. Então foi o filho da diretora que, a pedido da minha mãe, olhou se eu tinha passado. E ele não disse pra mãe qual tinha sido minha classificação. Ao invés disso, falou só que eu não tinha passado.  Como já esperava pela proclamação pública da minha derrota desde o dia da prova discursiva com a questão sobre a Bahia dos Porcos, acreditei. Alguns anos depois eu descobri que tinha passado sim, mas como o 80° excedente de 40 vagas. Também descobri que a concorrência tinha sido maior do que a prevista: ao invés de 12 por vaga, como estava no folheto que li antes de escolher o curso, fomos 40 candidatos por vaga. 

Comments

Adorei e já estou esperando pelo segundo capítulo!
Anonymous said…
Acompanhando por aqui também.

André
Estou trabalhando nele. =)

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