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Ficções quase reais

Quando eu tinha meu blogue, era o que eu mais escrevia. Estou meio sem prática, tentando voltar. Então... eis o que tenho feito no Word.

Garotos e garotas
Há uma falta que não consigo distinguir. Ela ocupa lugar em mim. Eu sinto e é muito claro e físico, mas não, não estou falando de sexo. Se a questão fosse essa, a solução era fácil. O que eu estou falando é maior, bem maior. Maior que eu e implacável. É esse bolo na garganta, é esse grito sufocado como foi sufocar o grito no Kamikaze do parque de diversões furreca que todo ano visitava a cidade. Explico. Eu tinha onze anos e estava satisfeito. Vi os meninos mais legais da minha sala duas fileiras à frente. Planejei esbarrar neles quando o brinquedo parasse e tivéssemos que descer as escadas. Depois que me reconhecessem e me convidassem a andar com eles, eu ia me despedir da mãe e descobrir como é estar com os caras e falar com as garotas. E então, no dia seguinte, eu participaria das conversas, estaria nas rodas, faria parte delas. Estava tudo já planejado. Da primeira vez que o brinquedo ficou de cabeça para baixo, porém, eu quis chamar minha mãe. Mas era vergonhoso chamar a mãe. Eu me calei. Segurei o banco com todas as forças e empurrei meu corpo contra ele até o cinto de segurança ficar obsoleto. Os outros garotos, e mesmo as garotas, largavam seus braços estendidos no ar. Eles também gritavam, urravam e sorriam cheios de pavor. Eu não. Diferente, permaneci seguro e calado, com a boca cheia de ar e o coração aterrorizado. A cada volta do brinquedo, o ar da boca passava um pouco para o coração. Mais e mais, eu sentia que ele inchava. Quando acabou, meu peito estava a ponto de estourar. Desci devagar as escadas, segurando o corrimão preocupado em não cair. Minhas pernas tremiam. Minha mãe me esperava lá embaixo. Todos os outros garotos e garotas passaram por mim em pequenos bandos. Eu os ouvi contar uns aos outros como sentiram medo ou tiveram coragem e, sem dizer nada, segurei firme a mão de minha mãe. Ela me ofereceu sorvete de chocolate. Não aceitei e contei que estava enjoado. Então ela riu dizendo que tinha avisado sobre o Kamikaze. Demos uma volta, observando os outros brinquedos. “Só mais um?” ela me ofereceu. “Eu quero ir embora” respondi. “Nem o carrinho bate-bate?”, ela insistiu, “vamos ficar aqui e aí você vê como funciona, depois me diz se quer tentar”. Vi as pessoas entrarem no ringue: alguns adultos, muitas crianças e adolescentes, dois ou três conhecidos meus da escola e mais dois ou três vizinhos de rua. A música. As faíscas que se soltavam no encontro de uma espécie de antena que havia na parte de trás dos carrinhos e subia até tocar a tela de metal que corria rente ao teto. Os gritos. Os risos. Os nomes berrados em meio a gargalhadas de pais, mães e amigos que assistiam quem brincava. As batidas dos carrinhos. Tudo. De repente, tudo tinha se tornado demais para mim. Ninguém sabia, mas meu coração estava cheio de nada e não quis experimentar mais nenhuma emoção naquele dia. Insisti que queria ir embora, estava prestes a chorar. Mamãe mudou o jeito de me olhar e fomos para casa. Acho que foi ali que comecei a sentir essa falta. Essa falta que ocupa lugar em mim, que é clara e física, mas que não tem nada a ver com sexo. Essa falta que é maior, bem maior, bem maior do que eu e que é implacável.  Essa falta que é esse bolo na garganta, que é esse grito sufocado, que é esse monte de coisa alguma que não consigo explicar porque não é nada.

Renata M. Cordeiro

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