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Tradução, sacação, traição

Deu na Folha de São Paulo: Roberto Domênico Proença "traduziu" os contos de Voltaire - trocando uns detalhes aqui e outros dali de uma tradução antiga de Mário Quintana. A troca era pura crocodilagem - os erros contidos na tradução do poeta gaúcho continuaram. A Martin Claret, editora especializada em livros de bolso, publicou traduções igualmente plagiadas de "Os Irmãos Karamazov" e "A República". A primeira, assinada por Alexandre Boris Popov, é cópia de uma antiga versão da editora Vecchi. A tradução de "A República", assinada por Pietro Nassetti, é, na verdade, uma versão de Maria Helena da Rocha Pereira.
Essa história de tradução requentada é antiga. Eu perdi o respeito intelectual por um grande poeta [que continuo respeitando muito como poeta] quando percebi que uma das suas "traduções" eram assim mesmo, muito entre aspas. As pessoas se fiam muito na ignorância geral da nação para fazer bonito, mas esse tipo de impostura prolifera particularmente no mundo das traduções, principalmente de prosa, quando quem lê a tradução o faz porque não pode ler o original e não tem como julgar o trabalho feito. É o crime perfeito, até que se pegue o criminoso...
Quem conhece as dificuldades do ofício de tradutor, aumentadas pelas péssimas condições de trabalho, sabe: o melhor a fazer é ler, sempre que possível, o original. Digo isso consciente de que nunca vou passar do "oi como vai" em um punhado de línguas que são importantíssimas: Mandarim, Russo, Japonês, Urdu, Hebraico e Árabe, por exemplo. Portanto há que se cuidar antes de sair dizendo por aí que Dostoiévski é isso e aquilo; o Dostoiévski que eu conheço pode muito bem ser consideravelmente diferente do original Russo. Um artigo recente da New Yorker sobre as traduções "clássicas" de Dostoiévski para o inglês atestam o que eu digo: a tal influência de Dostoiévski em Faulkner é a influência dessas traduções mula-manca para o inglês em Faulkner, assim como até uns poucos anos atrás falar de influência de Faulkner na América Latina é uma piada se o escritor em questão não sabia ler inglês muito bem [e para ler Faulkner em inglês, dependendo do livro...]. A "tradução" do tal poeta de que falei é um bom exemplo do que eu estou dizendo: a tradução brasileira que o camarada copiou era uma traducão do Gogol já traduzido para o francês. Quando comparei as duas com uma tradução do Russo para o inglês, encontrei textos completamente diferentes. E Gogol à essa altura... rola na sepultura. Ou não? O mundo das traduções sempre foi assim, desde a Bíblia, um livro pelo qual as pessoas literalmente se matam e que foi traduzida das maneiras mais absurdas desde sempre até bem pouco tempo atrás. A história da relação entre línguas diferentes tradicionalmente se faz de mal-entendidos - o modelo dessas relações seriam as paródias que Moreira da Silva cantava de filmes de Hollywood:

O Rei do Gatilho [Miguel Gustavo]

Trecho falado :


'' o rei do gatilho, super bang-bang de michael gustav, com kid morangueira, o mais famoso pistoleiro de wichitta. temido pelos bandidos, pois só atirava em nome da lei.''


Começa o filme com o garoto me entregando
Um telegrama do arizona, onde um bandido de lascar
Um bandoleiro transviado que era o bamba lá da zona
E não deixava nem defunto descansar.
Dizia urgente que eu seguisse em seu socorro.
A diligencia do oeste neste dia ia levar
Vinte mil dólares do rancho águia de prata
Onde a mocinha costumava me encontrar


'' venha urgente, pois estou morta de medo. só tú poderás salvar-nos.
Beijos
Da tua mary.''


Botei na cinta dois revolveres que atiram
Sem que eu precise nem ao menos me coçar
Assobiei para um cavalo que passava do outro lado
E com o bandido mascarado fui lutar
Cheguei na vila, nem dei bola prô xerife
Entrei direto do saloon, fui me encostando no balcão
Com o chapéu em cima dos olhos nem dei conta
De que o bandido me esparava a traição
''-cuidado, moreira-''
Era um indio meu parceiro que sabia
Das intenções do bandoleiro contra mim
E advertia seu amigo do perigo que corria
Devo-lhe a vida, mas isso não fica assim
A essa altura o cabaret em polvorosa
Já tinha um cheiro de cadáver se espalhando
Houve um suspense de matar o hitchicock
E em close-up prô bandido fui chegando
Parou o show e as bailarinas desmaiaram
Fugiram todos só ficando ele e eu
Ele atirou, eu atirei e nós trocamos tantos tiros
Que até hoje ninguém sabe quem morreu
Eu garanto que foi ele, ele garante que fui eu
Só sei dizer que a mulher dele hoje é viúva
Que eu nunca fui de dar refresco ao inimigo
Como no filme bang-bang vale tudo
O casamento da viúva foi comigo
Tem um final, mas o final é meio impróprio e eu não digo
Volte na próxima semana se quiser ser meu amigo
Eu de cowboy fico gaiato, mas não fujo do perigo.

Fonte: http://letras.terra.com.br/moreira-da-silva/962265/

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