Skip to main content

Onde o filho chora e a mãe não ouve - Primeira parte

A moça que limpava e arrumava a casa não vem mais e não há ninguém para reclamar de volta o que antes a natureza tomava e aparentemente deixava reconquistar, mas que agora, depois de dois meses, se entrega por completo: tufos de mato brotam das rachaduras do piso, musgo e mofo crescem pelos cantos das paredes e insetos de vários tamanhos e formatos atravessam cada vez menos aflitos distâncias cada vez maiores, fazendo e desfazendo a descoberto suas transações misteriosas. Tudo aqui parece indicar que a história não pára, mas nessa casa o tempo está curiosamente em suspensão: passado e futuro se acumulam em camadas sucessivas sobrepostas a um presente cada vez mais impreciso e obscuro.
São 6 árvores ao todo, plantadas há muito tempo, perto demais umas das outras, amontoadas como que aleatoriamente no espaço exíguo do quintal, confinadas por muros altos que tentam esconder inutilmente três prédios imensos, dois deles colados na divisa do terreno, mastodontes de mais de 20 andares sem garagem, cheios de salas vazias cheias de ratos e baratas e escritoriozinhos obscuros cheios de gente ocupada em negócios e ofícios improváveis. Dos basculantes encardidos caem de tempos em tempos guimbas de cigarro, copos de plástico e pedaços de papel que se acumulam no chão quando atravessam a tela espessa formada por folhas e galhos.
No meio do quintal coberto de folhas secas e lixo miúdo vê-se uma cadeira e uma mesa de plástico ressecado e encardido. Três cachorros sujos, famintos e sarnentos fuçam pelos cantos e entre os tufos de grama esquálida que insistem em uma existência raquítica sob a penumbra quase completa das árvores.
O velho nos aparece então plantado no meio do quintal, quase imóvel na cadeira de plástico, centrado feito uma estátua de pedra assentada em equilíbrio precário. Na frente dele, em cima da mesa, estão uma pilha de jornais velhos, outra pilha de papel em branco, um copo com canetas e tesoura e o molho gordo e pesado, com as mais de vinte chaves da casa, das quais ele só usa uma, a do portão lateral por onde recebe todos os dias às onze a marmita de papel alumínio que um guardador de carros compra num copo sujo nas redondezas. A mão direita do dorso estático escreve com o que à primeira vista seria obstinação mas não passa de compulsão mecânica, abjeta. A letra miúda de inseto, quase ilegível, vai preenchendo lenta e implacável folha atrás de folha que caem no chão num monturo ao lado da mesa. A cada quinze folhas conta-se a mesma história, repetida com exatamente as mesmas palavras escritas na mesma ordem nas próximas quinze, sucessivamente, penosamente, dia e noite.

Comments

Popular posts from this blog

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p...