Skip to main content

Repente 1

Propus à Sabina Anzuategui um repente de citações e ela gostou da idéia. Ela postou um texto do Peter Handke e eu contrapostarei o final do conto "Barn Burning" de William Faulkner em uma tradução [infelizmente] ainda inédita feita por mim. O menino protagonista do conto acaba de denunciar seu próprio pai ao proprietário das terras onde eles vivem e foge correndo da fazenda. Faz isso quando percebe que o pai vai, mais uma vez, botar fogo em um celeiro como forma de revolta/protesto/vingança contra sua própria miséria e foge de casa.

"À meia-noite ele estava sentado na crista de um morro. Ele não sabia que era meia-noite e não sabia o quanto havia caminhado. Mas já não havia clarão atrás e ele estava sentado, com as costas para o que ele chamara de qualquer maneira lar ainda que por quatro dias, seu rosto apontado para a mata escura onde ele entraria quando recuperasse o fôlego, pequeno, tremendo com regularidade no frio da escuridão, abraçando-se com os braços metidos dentro do que sobrara da sua camisa puída, a tristeza e o desespero agora não mais terror e medo mas apenas tristeza e desespero. Pai. Meu pai, ele pensava.
- Ele foi um bravo! O menino falou em voz alta de repente, em voz alta mas não alto, não mais que um sussurro: Ele foi! Ele esteve na guerra! Ele esteve na cavalharia do Cornel Sartoris! sem saber que seu pai tinha ido para aquela guerra como um soldado raso no velho sentido europeu da expressão, sem vestir um uniforme, aceitando a autoridade e concedendo fidelidade a homem algum, exército ou bandeira alguma, indo para a guerra como fez Malbrouck : pelo saque – não significando nada e menos que nada se a presa de guerra era do seu próprio exército ou do inimigo.
As lentas constelações seguiam o seu curso. Em pouco chegaria a madrugada e o nascer do sol e ele teria fome. Mas então seria amanhã e agora o que ele tinha apenas frio, e caminhar era uma solução para isso. Seu fôlego já mais tranqüilo agora, decidiu levantar e seguir emfrente, e então percebeu que tinha estado dormindo porque sabia, que era quase alvorada e a noite estava quase no seu fim. Ele sabia por causa dos curiangos. Estavam por toda a parte agora, entre as árvores escuras lá embaixo, constantes, inflexíveis e incessantes, de tal forma que, à medida em que o instante em que eles teriam que dar lugar aos pássaros do dia aproximava-se cada vez mais, já não havia intervalo algum entre o vôo de um e de outro. Ele levantou-se. Estava um pouco duro, mas caminhar seria solução para isso também como seria para o frio, e logo chegaria o sol. Ele desceu o morro, na direção da mata escura na qual os liquidas vozes prateadas dos pássaros chamavam incessantes – o ritmo rápido e urgente do urgente coração cantante da noite do final da primavera. Ele não olhou para trás."

Comments

Interessante, o estilo é muito diferente do Peter Handke, mas o tema é próximo. No livro que citei, ele faz uma narração "abstrata" da vida da mãe, tentando encontrar na vida dela traços do que seriam todas as mulheres daquela região naquela época. Parece estranho mas funciona. Vou continuar citando o mesmo livro, porque há várias passagens sobre a humilhação da pobreza que me marcaram muito.

Popular posts from this blog

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p...