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Só muito tempo depois, depois que as duas irmãs viúvas e todos os meus irmãos morreram e foram enterrados; depois que eu passei do inferno da dor aguda ao purgatório da dor crônica e depois que a morte como idéia, abstrata, transformou-se nessa morte que desabrocha do corpo, concreta, é que eu voltei ao Brasil e vim parar aqui no Rio, de onde, de certa forma, eu nunca saí. Agora o Rio é meu, tão meu como de quem nunca tirou os pés daqui. Agora, livre da vulgaridade autoritária da memória do dia-a-dia, a beleza radiante dessa cidade se revela, generosa. Agora, velho, sou um mosaico desajeitado feito com cacos de toda essa gente que encobre delicada como a sombra de uma fumaça esguia todos esses fragmentos esparsos da minha cidade, que em mim adquirem uma unidade tenebrosa e profunda. Tenho as mãos e os cabelos do meu pai, os olhos e a boca da minha mãe, os pés do tio Chico, tiques dos meus quatro avós, pequenos gestos dos meus quatro irmãos, a doença da minha filha e, principalmente, a dor pela falta da minha filha. Tudo o que sou, o que falo e o que escrevo é deles, ainda que, agora, seja meu também. Cada centímetro quadrado desse minifúndio encarquilhado que é o meu corpo parece já ter sido de alguém que já foi, e ainda é, parte desta cidade. Agora, feliz, sozinho, velho e cansado, pronto para morrer (se é que isso existe; ainda tenho minhas dúvidas), a cidade sou eu sou eu a cidade meu amor.
Agora, eu sou o Rio de Janeiro.
Não, essa voz não é tua.
Paulo Henriques Britto
Paulo Henriques Britto
Só muito tempo depois, depois que as duas irmãs viúvas e todos os meus irmãos morreram e foram enterrados; depois que eu passei do inferno da dor aguda ao purgatório da dor crônica e depois que a morte como idéia, abstrata, transformou-se nessa morte que desabrocha do corpo, concreta, é que eu voltei ao Brasil e vim parar aqui no Rio, de onde, de certa forma, eu nunca saí. Agora o Rio é meu, tão meu como de quem nunca tirou os pés daqui. Agora, livre da vulgaridade autoritária da memória do dia-a-dia, a beleza radiante dessa cidade se revela, generosa. Agora, velho, sou um mosaico desajeitado feito com cacos de toda essa gente que encobre delicada como a sombra de uma fumaça esguia todos esses fragmentos esparsos da minha cidade, que em mim adquirem uma unidade tenebrosa e profunda. Tenho as mãos e os cabelos do meu pai, os olhos e a boca da minha mãe, os pés do tio Chico, tiques dos meus quatro avós, pequenos gestos dos meus quatro irmãos, a doença da minha filha e, principalmente, a dor pela falta da minha filha. Tudo o que sou, o que falo e o que escrevo é deles, ainda que, agora, seja meu também. Cada centímetro quadrado desse minifúndio encarquilhado que é o meu corpo parece já ter sido de alguém que já foi, e ainda é, parte desta cidade. Agora, feliz, sozinho, velho e cansado, pronto para morrer (se é que isso existe; ainda tenho minhas dúvidas), a cidade sou eu sou eu a cidade meu amor.
Agora, eu sou o Rio de Janeiro.
Comments
li ontem esse poema (a cidade sou eu...)
está muito bonito mesmo.
ah, e obrigada pelo poema. lindo!
que bom que o Legado te inspirou :)