Skip to main content

Ainda Lima Duarte, ainda Guimarães Rosa

E para completar o ciclo "descobrindo Lima Duarte", um pedaço da entrevista no Roda Viva, na qual ele fala, na minha opinião, com muita propriedade sobre a adaptação do Grande Sertão: Veredas para a televisão.

Jorge Escosteguy:
Agora, você não gostou, por exemplo, da versão que se fez na televisão do Grande sertão: veredas. [Em 1985, o livro foi adaptado em uma minissérie escrita por Walter Durst (1922-1997) e dirigida por Walter Avancini, protagonizada pelos atores Tony Ramos e Bruna Lombardi].


Lima Duarte: Ai, caramba! Estão me entregando...

Jorge Escosteguy: Que foi até, surpreendentemente, um sucesso.

Lima Duarte: Foi, sem dúvida. Eu não gostei, discuti isso com Walter Avancini, exaustivamente. Brigamos, até discutimos mesmo, porque eu tenho posições muito firmes a respeito do Grande sertão: veredas, é uma visão muito pessoal e muito própria. Também sei que cada um faz a sua leitura, como ocorre com grandes livros. Essa que está lá, na Sala São Luiz, é a minha leitura. São os trechos que eu acho mais importantes que eu ressalto e coloco, calçado por cançõezinhas que eu me lembro lá de Minas Gerais. Minha mãe era atriz de circo, ela fazia a peça e depois fazia um negócio chamado ato variado, onde ela cantava umas cançõezinhas...Na questão do Grande sertão: veredas que fizeram na televisão, de fato, não concordei com o espetáculo do Avancini. Se não for muito fastidioso, eu te explico aqui o porquê. Porque o Guimarães escreveu um livro que é, na minha opinião, sobretudo, uma história de amor, um livro sobre o amor. E, muito mais que uma história de amor, são dois jagunços, dois terríveis jagunços, muito eficientes, dois guerreiros com os dentes apontados, com unhas grandes, para ser todo o corpo uma coisa de guerra mesmo. Perdem-se as armas, eles dão dentadas. Então esse dois guerreiros machos...De repente, o Riobaldo, ou Tatarana ou Urutu-Branco começa: "Mas o que está acontecendo comigo que eu quero botar a minha mão onde ele botou a mão dele?". Eis o amor e denunciando em um olhar, em uma curva da estrada, em uma folha caindo, no sertão, na selvageria, na brutalidade, o amor que vem nascendo e se sobrepondo, até conquistar completamente os dois. Tanto que Riobaldo diz: "Era o amor mal disfarçado em amizade: é o amor!" E vende a alma ao demônio para se livrar desse amor. É uma metáfora muito bonita: vender a alma ao ódio para se livrar do amor. Pois muito bem. No fim, ele descobre que é mulher, mas só no fim, depois do amor ter vencido completamente. Então, o que eu não concordei - e disse ao Avancini - é que ele colocasse a Bruna Lombardi - nada contra a Bruna, é uma atriz que tem lá o seu espaço, faz lá o que ela quiser - mas é mulher entre as mulheres. A Bruna é mulher, a primeira cena em que ela aparecesse, todos os espectadores saberiam disso. É uma mulher vestida de jagunço. E aparece o outro jagunço, só estão esperando chegar ao fim da história para ele transar ela, mesmo porque o jagunço com aqueles olhos, todo o bando se apaixonaria também por ele. Isso invalida, na minha opinião, um elemento poderosíssimo do livro, que é a vitória do amor, onde ele não podia vencer.

Jorge Escosteguy: Você não acha que, apesar de todos esses problemas, o fato de a televisão veicular uma obra como o Grande sertão: veredas, que é tão difícil e vende pouco, é meio caminho andado para, não digo popularizar, mas dizer Guimarães Rosa?

Lima Duarte: É um caminho inteiro andado, é uma coisa maravilhosa. Nós estamos discutindo e falando isso em um nível bem...não é? É evidente que o Guimarães Rosa, aliás, o grande serviço que ele presta à maioria dos novelistas...todas as novelas de região têm o Guimarães Rosa. Eu acho que foi um trabalho maravilhoso, foi um espetáculo maravilhoso. Minha posição é conceitual, a interpretação do Avancini é que eu não concordo. Aliás, a adaptação, que é do Walter Durst, uma pessoa maravilhosa, um grande profissional, foi lindíssima. E ele também não gostou muito da escolha.

Comments

Popular posts from this blog

Contos: "O engraçado arrependido" de Monteiro Lobato

Monteiro Lobato conta em "O engraçado arrependido" a história trágica de um homem que não consegue se livrar do papel de palhaço da cidade, papel que interpretou com maestria durante 32 anos na sua cidade interiorana. Pontes é um artista, um gênio da comédia e por motives de espaço coloco aqui só o miolo da introdução em que o narrador descreve o ser humano como “o animal que ri” e descreve a arte do protagonista: "Em todos os gestos e modos, como no andar, no ler, no comer, nas ações mais triviais da vida, o raio do homem diferençava-se dos demais no sentido de amolecá-los prodigiosamente. E chegou a ponto de que escusava abrir a boca ou esboçar um gesto para que se torcesse em risos a humanidade. Bastava sua presença. Mal o avistavam, já as caras refloriam; se fazia um gesto, espirravam risos; se abria a boca, espigaitavam-se uns, outros afrouxavam os coses, terceiros desabotoavam os coletes. E se entreabria o bico, Nossa Senhora! eram cascalhadas, eram rinchavelhos, e...

Poema meu: Saudades da Aldeia desde New Haven

Todas as cartas de amor são Ridículas. Álvaro Campos O Tietê é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia, mas o Tietê não é mais sujo que o ribeirão que corre minha aldeia porque não corre minha aldeia. Poucos sabem para onde vai e donde vem o ribeirão da minha aldeia, 
 que pertence a menos gente 
 mas nem por isso é mais livre ou menos sujo. O ribeirão da minha aldeia 
 foi sepultado num túmulo de pedra para não ferir os olhos nem molhar os inventários da implacável boa gente da minha aldeia, mas, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está, 
 a memória é o que há para além do riberão da minha aldeia e é a fortuna daqueles que a sabem encontrar. Não penso em mais nada na miséria desse inverno gelado estou agora de novo em pé sobre o ribeirão da minha aldeia.

Uma gota de fenomenologia

Esse texto é uma homenagem aos milhares de livrinhos fininhos que se propõem a explicar em 50 páginas qualquer coisa, do Marxismo ao machismo e de Bakhtin a Bakunin: Uma gota de fenomenologia Uma coisa é a coisa que a gente vive nos ossos, nos nervos, na carne e na pele; aquilo que chega e esfria ou esquenta o sangue do caboclo. Outra coisa bem outra é assistir essa mesma coisa, mais ou menos de longe. Nem a mãe de um caboclo que passa fome sabe o que é passar fome do jeito que o caboclo que passa fome sabe. A mãe sabe outra coisa, que é o que é ser mãe de um caboclo que passa fome. Isso nem o caboclo sabe: o que ela sabe é dela só, diferente do caboclo e diferente do médico que recebe o tal caboclo e a mãe dele no hospital. O médico sabe da fome do cabloco de um outro jeito porque ele já ficou mais longe daquela fome um tanto mais que a mãe e outro tanto bem mais que o caboclo. O jeito que o médico sabe da fome daquele caboclo pode ser mais ou menos só dele ainda, mas isso só se ele p...